A partida III

84 7 0
                                    

Acho que Keana foi a mais forte de nós três na luta de superação contra o câncer. Doutor Jaime estava mais debilitado que a filha, pois a notícia trouxe a tona todo o sofrimento enfrentado por ele na perda de sua amada Elise, mãe de Keana, que tinha falecido da mesma doença quando Ela ainda era quase uma recém nascida. Seu sentimento era de que não poderia passar novamente por tudo aquilo, mas o convenci que ambos precisaríamos nos manter fortes para transmitir a Keana toda a confiança necessária para o tratamento que sabíamos seria doloroso para todos. Depois de duas semanas de exames, estávamos no consultório do doutor Ricardo, famoso oncologista e amigo pessoal do doutor Jaime, que conhecia Keana desde a infância.

Ao deixarmos aquela sala, nossas esperanças estavam renovadas para a luta que iríamos iniciar. Keana estava mais confiante e nos passou isso. Durante a semana que antecedeu a cirurgia, ela tratou de alguns assuntos pendentes na clínica, como se preparasse para uma simples viagem e não falou sobre a mesma nem mesmo comigo. Era como se a Keana que fosse ser mutilada fosse outra, diferente daquela que dormia comigo todas as noites.

Eu, por outro lado, respeitava seu silêncio, mas já havia perdido tanto na vida, que o medo se fez presente bem lá no fundo de meu coração.

Keana  como era de ser supor tentou até o fim, mas na semana que antecedia meu aniversário, muito abatida, pediu para ir para casa e mesmo contrariando ordens médicas, a retiramos do hospital, pois no íntimo tínhamos o pressentimento que ela desejava morrer em casa.

Tentei fazer de nosso quarto o mais aprazível possível para ela, enchendo de flores e cortinas novas e claras, para que sempre tivesse sol. Ela já não tinha forças para se levantar e mais uma vez o doutor Jaime insistiu para que contratássemos uma enfermeira que ficasse à disposição, mas agora fui eu que rejeitei a proposta, pois pus como prioridade e mesmo obrigação que fosse estar ao lado dela até o fim, mesmo que sentisse que morria um pouquinho também dia após dia.

_Preparativos para amanhã? Keana Perguntou se referindo a data.
_ E quem disse que gente velha faz esse tipo de comemoração
tentei brincar.
_E desde quanto 22 anos são sinal de velhice? Vamos comemorar sim, pelo menos com bolo. Chame a Selena e o Justin, pois da última vez não deu tempo nem de papearmos muito naquele hospital.
_Vou pensar no seu caso, menina festeira. Eu não me lembro de grandes comemorações quando a senhorita entrou para a casa dos trinta. Quem é que não quis fazer nada e ficou todo o dia trancada em casa sem receber ligações?
_Ali era diferente, eu estava me tornando uma balzaquiana e você só conseguia rir de mim
_Sempre que quiser minha Keana estou aqui para sempre que você precisar que alguém ria de você,
Falei enquanto ria.
_Isso so pode querer dizer que você  me ama muito.... não é? Olhou-me com os olhos meio vermelhos e a voz trêmula.. foi então que Eu percebi que não estávamos mais brincando.

_E você acha que não?
Perguntei seria  encarando seus olhos.
_Tenho certeza que sim, a seu modo, mais como uma irmã sentiria por outra.

_Não tenho irmã, Keana, você é minha mulher lembra?
_Eu sei e não estou me queixando. Sei que você me deu o melhor dos sentimentos guardados aí, mas sinto que o amor de verdade ou você não conheceu ainda, ou se já conheceu... e escondeu... em algum lugar...

Não falei mais nada, Não tinha como continuar levando aquela conversa, Não Naquele momento após meses de uma luta perdida naquele hospital para combater aquela doença maldita que a estava tirando de mim, como agora Eu iria lhe explicar que chamas poderia amar a ela ou a qualquer outra pessoa, pois meu amor já tinha dona... com nome e sobrenome.

No dia seguinte, a vida me deu de presente a dor.
Ao acordar naquela manhã ainda com Keana em meus braços, senti seu corpo frio.

Estava morta .

a abracei como se pudesse passar minha força vital para ela. Chorei como a muito não chorava de desespero, como uma náufraga no meio do mar da vida, de remorso por sentir que realmente não tinha amado Keana não como ela merecia.

Fiquei ali não sei dizer quantos minutos agarrada em seu corpo até ouvir o toque do telefone. Demorei um pouco para me dar conta, mas o barulho era insistente e ao atender, doutor Jaime ao perguntar pela filha mas entendeu a minha súbita mudez.

Depois tudo se passou muito rápido. Quando me dei conta, já estávamos no velório, em uma capela fechada, mas que não impediu a presença de fotógrafos e repórteres, já que a família era tradicionalmente conhecida.

Doutor Jaime pareceu melhor preparado que eu, talvez os anos de medicina o tenham ensinado quando se perde a batalha para a morte. Eu estava em um estado quase catatônico e muito tempo passou para que eu percebesse a presença de Justin, Hailey e Selena ao meu lado. Muitas pessoas da dita sociedade apareceram e até davam entrevistas a porta da capela, demonstrando um pesar fingido, já que a maioria não convivia com Keana.

Eu permaneci ali do lado do caixão todo o tempo, não me importando do que seria dito. Doutor Jaime se retirou quando era madrugada, muito abalado mas controlado e insistiu que eu também fosse descansar.

_Eu prometi ficar ao lado dela até o fim.
disse simplesmente e ele não falou mais nada.

Estava amanhecendo quando Chris conseguiu chegar. Não disse nada, só me abraçou e me senti confortável no abraço de meu irmão. Comentou que o pai mandava lembranças e que estava muito sensibilizado. Perguntei por Mariana e ele comentou que estava bem, e que logo seria pai. Eu consegui sorrir timidamente e dar-lhe os parabéns.

_Você não brinca em serviço, hein rapaz?
_É seu Mike que não agüentava de vontade de ter um neto
ainda com aquele seu jeito brincalhão tentou me animar mas confesso que eu não ouvia mais nada. Minha mente estava longe e foi chegar até Camila.

Não tinha como eu não lembrar que hoje também era aniversário dela, e que momento mais distante não poderia ser.

Ela provavelmente comemorava vida, sim, pois a pequena Sofia Cabello tinha nascido no fim do mês de março, o que foi notificado com grande repercussão na época por revistas de fofocas. Em todas, tinha a foto do casal feliz e da pequena herdeira. Lembro-me de Keana comentar que com a criança no colo, sua expressão estava tão feliz, diferente da Camila que tínhamos visto em Nova York.

Tinha certeza que naquele momento, ela estava tendo o melhor aniversário de sua vida, porque estava cercada por pessoas amadas, com a filha nos braços, outra vida que agora dependia da sua. E eu estava me despedindo da pessoa que talvez mais tenha me amado nessa minha curta existência de perdas.

Pela manhã foram chegando mais gente, os amigos da clínica, o pessoal do meu jornal, Seu Alberto e dona Matilde e muitas pessoas que na sua curta vida, de alguma forma Keana tinha influenciado.

Doutor Jaime se aproximou, eu nem o tinha visto chegar e me disse que já era hora. Antes de fechar o caixão, ele tentou dizer algumas palavras, mas a emoção tomou lugar e sua voz deu lugar a lágrimas.

_O que o doutor Jaime quer dizer, falei com a voz surpreendentemente firme

—é que Keana  modificou de um jeito único a vida de todos que tiveram o prazer de conviver com ela, pois ela era a generosidade em pessoa e se fez presente de uma forma permanente em cada dia de nossas vidas e assim será até o fim, pois o que aprendi com ela levarei para sempre, me tornei um ser humano melhor, graças a você .... Fique em paz minha Keana e nos ajude a aprender a viver sem sua presença de amor;

terminei de falar, e sob o olhar até surpreso de muitos, beijei seus lábios frios e segurando com carinho sua mão esquerda retirei a aliança que ainda estava ali e a coloquei junto a minha.
Em sua mão, depositei a velha medalha de Nossa Senhora do padre Simon e tive a esperança que assim que ela o encontrasse a devolvesse, quem sabe...

Só sei que assim que aquele caixão desceu à sepultura, era enterrado ali também  de vez meu coração, já que nem mais os estilhaços dele tinha sobrevivido dessa vez.

Letra e Música Onde histórias criam vida. Descubra agora