Quinze Anos

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E assim, cinco anos passaram rápido. Sempre que podia, Camila, Chris e eu, saíamos escondidos para passear pelas redondezas. Chris eu creio que não gostou a princípio, a chamava de dondoca, mas Camila tinha um charme irresistível e quando sorria, não tinha como lhe negar nada.

No dia da primeira comunhão, estávamos as duas juntas, recebendo o Corpo de Cristo, ela num vestido de princesa, dona Sinuhe achou um absurdo, misturar sua filha com a ralé, mas padre Simon fez questão de dizer, que perante Deus, somos todos iguais e estava acabado, para completar seu Alejandro mandou fazer um grande churrasco em praça pública para a população comemorar, o que a deixou mais furiosa ainda.

O meu, ganhei de seu Mike, que era de sua falecida esposa Clara quando era mais jovem, e além de ter que ser muito lavado para tirar o cheiro de mofo, mamãe teve que cortar ali, remendar acolá, mas acho que como padre Simon fez questão de salientar, Deus olhava o coração.

Só não nos a víamos, quando ela ia passar férias e sempre viajava para a praia ou outros lugares, até fora do país. Já naquele tempo, ela começou a viajar para tocar e já era conhecida como um prodígio único na música, capaz de interpretar qualquer peça dos mais diversos compositores com sucesso absoluto. Lembro-me quando ela me trouxe, além de fotografias, uma garrafinha com a água do mar, só para me provar que era salgada mesmo, e eu, boba tomei de um gole só. Quase morri engasgada, primeiro pelo gosto horrível e em segundo de raiva mesmo, pois ela não parava de rir.

Era início de setembro e se aproximava nossos respectivos aniversários de quinze anos. O meu, eu já não dava muito importância mesmo, mas o de camila, no momento era o assunto da cidade. Seu Alejandro fazia questão de fazer uma festa que fosse lembrada por anos. Mandou vir tudo de bom e do melhor, contratou até banda da capital para tocar. Um dia antes da festa, ela apareceu no sítio. Meus pais já estavam na lida, quando ouvi uma batida na porta. Quando abri lá estava Camila, com um daqueles seus vestidos coloridos e lindos, que pareciam dançar no seu corpo que já começava a ganhar formas. Ela entrou com as mãos atrás das costas.

-Vim por dois motivos. Primeiro te convidar para a festa de amanhã, papai faz questão e eu mais ainda. Sem você que graça terá aquela festa, sem a gente poder rir daqueles mauricinhos que a minha mãe andou convidando.

_Você sabe que em primeiro lugar, sua mãe me odeia, em segundo, não me sentiria bem em meio a seus amigos ricos e em terceiro, não tenho roupa para essa ocasião..
disse de modo meio ríspido que deve tê-la assustado. Tenho que confessar o real motivo da minha grosseria, é que dias antes da festa, estava comentando com o Chris sobre a ocasião e ele me contou que tinha ouvido seu Alejandro falar que vinha da capital um namoradinho de Camila. Naquele momento eu não sabia, mas era ciúme, cru e simples que eu estava sentindo.
_Eles não são meus amigos, você que é;
falou com a voz sentida

- e você sabe que pode pegar qualquer vestido meu emprestado, pois temos o mesmo tamanho quase
continuou falando mais animada.

Sem querer, ela estava mais uma vez me lembrando de minha posição inferior. Claro que hoje eu já cresci e esse complexo de inferioridade superado, mas naquele momento eu era apenas uma adolescente me sentindo sozinha contra o mundo.

-Não preciso de nenhuma sobra sua, quase gritei.
-Sempre foi assim, Camila não quer mais, dá para a bastardinha.

_ Nunca percebi que se sentia assim
disse já com os olhos marejados.
_Claro, você só enxerga o que é bom para você, a Camila estando feliz, os outros que se virem. Não estão aqui todos na Terra com a única missão de ter que te servir?

Ela não me respondeu, apenas deixou um pacote que escondia atrás das costas sobre a mesa dizendo feliz aniversário e saiu batendo a porta.

Quando abri o pacote, meus olhos derramaram muitas lágrimas, pois se tratava da coleção de livros de Machado de Assis que eu sempre quis ter. Eu tinha comentado que tinha um ou dois que o padre Simon tinha me dado (que por sinal eram velhinhos como o bom padre) e ela deve ter se lembrado. Mas o orgulho me impediu de pedir perdão e ainda mais de aceitar o presente. Pensei: na primeira oportunidade, devolvo. Só não sabia que ela viria de forma muito dolorosa.

No dia seguinte, meus pais me acordaram sempre como faziam em meu aniversário e depois de me abraçarem e desejar felicidades, eu notei que minha mãe estava muito abatida e parecia até com febre, mas não quis ficar porque ela disse que o dia era de muito trabalho e ela só voltaria de madrugada, pois ia servir na festa.

Meu pobre almoço ela deixou pronto no fogão e me perguntou se eu não queria ir mesmo. Apenas com meu olhar ela entendeu a resposta. Na verdade, eu pensava era em ir para a cidade e dormir na casa do Chris, não queria ter que ouvir nenhum som que me lembrasse ela ou a maldita festa. Era meio dia, já tinha almoçado, quando a porta se abriu bruscamente e meu pai entrou com minha mãe nos braços, muito febril e fraca. Eu me desesperei, mas meu pai disse que o Dr. Joaquim (nossa cidadezinha naquele tempo já tinha um pequeno ambulatório graças ao seu Alejandro claro, que deu o dinheiro pro prefeito construir, que agora não me lembro o nome até porque não mandava nada mesmo) e ele nos disse se tratar de dengue. Vejam só, rodeados de tantos perigos, um mosquitinho tinha derrubado minha mãe.

-O dotô disse que era pra tomá muita água e descansá; falou papai depois de colocá-la na cama.
_Fia
minha mãe falou como se num sussurro
-a gente ta precisano do dinheirinho extra dessa noite pro seu estudo. Vai lá, sei que vai ser doído, mas é só dessa vez, a mãe ta pedindo e apesar daquele bando de fresco da capital que ta lá só pra atrapalhar, a Zefa não dá conta do serviço sozinha.

Minha mãe realmente me conhecia, ela sabia que ia doer demais, mas não tinha escolha. Quantos sacrifícios eles faziam apenas para economizar para meus estudos, sempre pensando em mim primeiro.
E assim foi, era bom, assim pensava eu, aprenderia o meu lugar. Lembrei que a Zefa é que estava certa quando disse que da porta da cozinha não se passava para a sala. Coloquei os livros numa sacola, com a intenção de deixar lá em qualquer canto, sem bilhete, sem nada.

Cheguei e fiquei maravilhada como da primeira vez, agora sim, ainda mais parecida com um castelo. A fazenda estava enfeitada com as cores rosa, branca e azul, mesas com enfeites de flores frescas e coloridas, palco sendo montado, com jogo de luzes e tudo e muita gente correndo de lá pra cá e madame Valquíria berrando com todos, com aquele sotaque engraçado. Ela também me achava má influência para uma dama, bem, quem sabe ela tinha razão.

Quando ia me dirigindo para a porta dos fundos, para que ela não percebesse minha presença, dou de cara com seu Alejandro que me dá um forte abraço.

_Que bom, chegou cedo para a festa, sobe vai falar com sua amiga que está meio jururu, como falam por aqui
Disse e deu uma forte risada.

_Vim para trabalhar, seu Alejandro , mamãe não pode vir, pegou dengue e pediu para eu ajudar a Zefa.

_É grave?
Perguntou preocupado.
_Acho que não, o doutor Joaquim disse que repouso resolve.

_Mas aqui tem tanta gente para trabalhar, você é amiga de minha filha e sua convidada, não quero que seja diferente
disse ainda tentando me convencer, mas o calei dizendo:
_Não há ligação entre mundos tão diferentes seu Alejandro , meu lugar é na cozinha, preciso desse dinheiro extra e já devo estar atrasada e quando ia saindo me lembrei:

_Entregue para sua filha e diga que não posso aceitar o que não posso pagar.

E o deixando sem entender nada, fui virando as costas e me dirigindo a cozinha.

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