O Menino Ostra

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20/07 00:20

Sem assunto

Querido Julian

Essa semana tem sido intensa, como esperava que acontecesse. Parece que você e sua família chegaram na hora certa de salvar o dia também. Conversar com você tem sido um alívio e me da esperanças de dias melhores à frente.

Esse últimos dois dias não conversamos, e eu disse que explicaria, e há certas coisas que ainda parecem menos reais quando escrevo por email, como se estivesse falando de outra pessoa que não eu. E acho que nesse momento isso é tudo de que preciso. Me desligar do que está acontecendo por alguns instantes. Ser outra pessoa.

Apenas Beau.

Os depoimentos foram brutais. O julgamento ainda não foi marcado, mas provavelmente será em alguns meses ainda, ainda mais agora com tantas mais evidências a serem avaliadas. Recebi permissão de ser representado, de ter o direito de não estar aqui. Recontar tantas vezes o mesmo fato torna tudo mais real e assustador. Ainda mais agora, que minha família sabe do que se passou. Por mais que todos sejam maravilhosos em relação a isso, em apoio e carinho, as vezes sinto que não consigo respirar. Parece que em cada canto alguém vai pular e atacar. Fecho os olhos e ouço o som de Elizabeth batendo na parede, o som de pancada, pele contra pele, ou o estalido de um osso quebrando. Ou como tudo o que aconteceu noites atrás foi tão igual a Torres: alguém que amo se machucando por minha causa novamente, e eu sem conseguir fazer nada pra impedir. E então tudo se junta com as lembranças de Santa Maria, a tremenda impotência. E é nesse momento que vou ao banheiro vomitar.

Acho que gostaria de saber que Ben me convenceu a começar terapia. Ontem foi a primeira sessão. Achei que seria como quando era criança, que passaria a sessão inteira calado, mas não foi isso que aconteceu. E a conversa que aconteceu me fez perceber, como desde que me lembro tenho estado no survivor mode, tentando sobreviver a cada dia. Sobreviver as pessoas na rua, as ameaças em cada esquina. Aos comentários, as críticas contra mim e minha família. Ao medo de desapontá-los, de eles perceberem que sou apenas um problema. Que eu não valho tudo pelo o que eles passaram. Eu tento não ir dormir e pensar no que posso passar no outro dia. Sobreviver a mim mesmo também, a toda a negatividade que sinto, a vontade as vezes que tenho de desaparecer para ter algum alívio.

Eu não quero desistir, no entanto. Eu sou teimoso demais. Um sobrevivente. Há algo dentro de mim que sempre quer lutar, mesmo contra tudo, quando nada parece está ao meu favor. E eu vou continuar fazendo isso. Mesmo sendo tão duroe exaustivo as vezes.

E então eu fiquei pensando que deveria focar nas coisas boas e não nas ruins. E ajudou. Nem todos tem a família que eu tenho, o apoio pelo o que passei. Os bons poucos amigos. Ao menos entre os meus, não há perigo em ser quem eu sou, e quem pode dizer que tem essa mesma sorte? Não todos. E eu tenho você também Julian, que tem me ajudado tanto, e eu nem sei se você tem ideia do bem que anda me fazendo.

Aconteceu tanta coisa ruim nos últimos anos, mas houveram surpresas boas sabe? Caio e sua lealdade e paciência. Noites atrás, por meio de tantos estranhos que sairam daquela festa me ajudaram, eu vi que ainda existe gentileza no mundo. E você Julian, e sua família, vocês me deram razões pra acreditar em muita coisa que havia esquecido. E eu agradeço tanto por isso. Por renovarem uma fé, esperança na humanidade que vinha aos poucos perdendo. E quando você perde esperança nas coisas, o que sobra?

Eu não estou bem há tanto tempo, mas pela primeira vez eu consigo ter certeza que as coisas vão melhorar. Mesmo que não de uma hora pra outra, em certas instâncias: o preconceito, a violência, a não aceitação ainda vai continuar por muito tempo, isso é fato. Ainda haverão pessoas prontas para machucar por nada, a ferir umas as outras gratuitamente. Isso não é algo que vai desaparecer rapidamente. As mudanças que eu falo, vem de mim. Do que posso fazer. Sobre as coisas que posso mudar sobre mim mesmo e sobre o mundo que me rodeia. E sobre aquelas que não posso mudar, mas posso escolher como reagir. E isso é o mais importante não?

Salvem as BaleiasOnde histórias criam vida. Descubra agora