Capítulo 6

2.7K 101 2
                                    

No dia seguinte pela manhã, após o café, as crianças foram apresentadas ao
professor.
Combinaram que logo após o almoço ele faria uma avaliação de seus
conhecimentos. Pediu
que cada um levasse os cadernos que possuíam. Amelinha, até eles se
mudarem para
Sertãozinho, estudara em um bom colégio. Eurico, entretanto, nunca tivera
essa
possibilidade. Aprendera a ler com ajuda da tia e de professores particulares,
entre uma
crise e outra, o que dificultava a aprendizagem. Ele era inteligente, aprendia
com facilidade,
entretanto não tinha entusiasmo, vivia indisposto e os médicos aconselhavam
a não o
forçar.
Alberto reuniu-se com eles em pequena sala que Eulália preparara para esse
fim, tendo
colocado nela uma mesa, cadeiras, um quadro-negro e um armário com
material escolar.
Depois de duas horas com eles, dispensou-os. Antes de sair, Nico quis saber
se não corria o
risco de perder o ano. Eulália havia procurado a escola e conversado com a
diretora, que,
percebendo o interesse de Eulália em ajudar Nico a fazer carreira,
concordou que ele
estudasse fora, havendo prometido ela mesma submeter os três aos exames
no fim do ano.
Era um caso especial e ela queria ajudar tanto Nico quanto o menino doente.
- Se levar a sério os estudos, você vai passar. - Vou estudar muito, o senhor vai
ver. Alberto
sorriu.
- Vamos ver isso.
Quando as crianças saíram, ele procurou Eulália.
- Já conversei com as crianças e anotei alguns dados para a primeira
avaliação. Pretendo ir
falar à diretora da escola para acertar o currículo. Como a senhora sabe, os
três estão em
diferentes estágios. Nico está no terceiro ano, Amélia no segundo. Quanto a
Eurico, penso que ele poderá encaixar-se no segundo ano com Amélia. Vamos ver.
- Acha que ele tem possibilidade de acompanhar um currículo escolar? São
várias matérias,
e não sei se ele conseguirá.
- É um menino inteligente.
- Muito. Mas doente. Meu marido já deve ter-lhe contado. Nasceu assim. Até
hoje não
conseguimos saber por quê. Cansa-se à toa.
Não se entusiasma com as coisas. Não sente motivação. Era até pior: nem
conversava, vivia
calado, triste, não se alimentava direito. Quando percebemos que ele gostava
da companhia
de Nico, tratamos de aproximá-los para ver se assim ele se interessaria mais
pela vida.
- Nico pareceu-me um menino muito vivo, educado, inteligente e interessado
em aprender.
- É um menino bom e muito dedicado. Nem parece filho de pais tão
humildes.
- Há pais que, embora de origem humilde, sabem educar bem os filhos. Não
têm instrução,
mas possuem sensibilidade, sabem conversar com eles e têm um bom senso
prático. Isso é
o mais importante em se tratando de boa educação.
- É verdade. Amãe dele é uma mulher admirável. Tem um marido
preguiçoso, que não
trabalha. Ela sustenta a casa lavando roupas para fora. Nico ajuda-a
prestando pequenos
serviços. Ele é muito trabalhador. Quando conversei com ela, fiquei
impressionada. Ela
sabe portar-se, e tem muito bom coração.
- Sabe orientar o filho. Ele fala nela com muito carinho.
- Eu notei isso. Só aceitou mudar-se para cá depois que ela garantiu que não
ficaria triste
sem ele e que ele poderia vê-Ia quando quisesse. - Esse menino tem alguma
coisa especial.
Percebi logo no primeiro instante.
- Especial? Como assim?
Alberto não quis dizer o que estava pensando. Retrucou apenas: - Tem olhos
expressivos,
atitudes seguras.
- De fato. Quando pensa começar as aulas?
O mais rápido possível. Vou pegar o currículo, conhecer os livros.
Então montarei a disciplina das aulas. Vamos precisar de material específico
além dos
livros.
- Não se preocupe. Faça a lista, que Liana trará tudo de Ribeirão Preto.
Quando ele saiu, Eulália ficou pensativa. Os médicos haviam-lhe dito que
ser:ia bom criar
Eurico igual a qualquer outra criança, sem mimos ou concessões. Como fazer
isso se não
podiam forçá-lo? Suspirou triste.
A atitude discreta e segura do professor granjeara-lhe a simpatia.
Era educado e tranqüilo.
Nos dias que se seguiram, Eulália verificou com satisfação que não se
enganara. Ele sabia
lidar com as crianças, e era com prazer que elas se reuniam para estudar. Sua
forma de
lecionar era muito diferente dos professores que ela conhecera.
Contava-Ihes histórias engraçadas, faziam pesquisas da natureza ao ar livre,
cantavam
canções conhecidas cujas letras haviam sido reescritas por ele de acordo
com a matéria que
pretendia ensinar.
A princípio Eulália temeu que ele estivesse sendo condescendente demais,
uma vez que se
misturava com as crianças, falando como elas, brincando e parecendo
também um menino.
Mas logo começou a perceber que eles, além de gostar das aulas, estavam
aprendendo com
facilidade. Eurico tornou-se mais comunicativo e nunca se queixou de mal-
estar durante a
aula.
Uma noite conversara com Liana a respeito.
- Ele parece um menino. Não impõe nada. Será que está certo?
Um professor deveria ser mais circunspecto. Você quando dá aulas não age
assim.
- Não. Aprendi que é preciso impor respeito aos alunos, conservando a
seriedade para que
eles não tomem liberdade demais.
- Então! O professor Alberto não é assim. As crianças adoram, mas não será
uma maneira
errada de ensinar?
Liana balançou a cabeça pensativa. Depois disse:
- Para dizer a verdade, apesar de todo o respeito que tento impor à classe,
eles sempre
abusam de mim. Falo com seriedade, dou castigo, mas eles nem ligam.
Continuam
indisciplinados. Às vezes tenho até de apelar para o diretor. Eles estão
abusando muito
dele? Amelinha é muito safada.
- Por incrível que possa parecer, eles estão muito comportados. Estou
admirada. Adoram as
aulas. Até Eurico estava cantando a tabuada do sete de cor.
- Cantando?
- É. Ele colocou a tabuada numa marchinha de carnaval, ficaram batucando
em um
pandeiro, cantando, e logo todos sabiam tudo muito bem. Liana sorriu alegre:
- Que engenhoso! Vou pedir-lhe que me ensine a fazer isso. Por mais que eu
tente que eles
decorem as tabuadas, sempre engasgam. - Acha então que ele está certo?
- Ensinar é uma arte. Se as crianças estão aprendendo, está tudo bem.
Naquela noite
mesmo, após o jantar, Liana procurou conversar com Alberto sobre seus
métodos de
ensino:
- Eulália contou-me que suas aulas são sempre muito movimentadas e que as
crianças estão
indo muito bem.
Gostaria que me falasse a respeito. Apesar de fazer tudo que aprendi, meus
alunos não têm
aproveitado como eu gostaria.
Alberto sorriu, um pouco sem jeito:
- Não cursei o magistério como você. Sou autodidata. Tenho minhas próprias
idéias sobre o
assunto.
- Gostaria de ouvir.
- Eu procuro ensinar da forma como eu gostaria de ter aprendido. - Como
assim?
- Quando eu era menino, a escola era para mim um lugar sem graça, que eu
freqüentava por imposição de minha mãe e por obrigação. Ela me dizia: "Se
não estudar,
você não será ninguém na vida. Vai morrer de fome". Eu detestava aquelas
horas que passava lá. Fazia as lições como quem se desembaraça de algo ruim,
contando os pontos
para poder passar de ano. Meus pais haviam se conformado, dizendo que eu
não era muito
inteligente, mas que se conseguisse me formar estava bom.
- Muitos de meus alunos são assim mesmo.
- Sempre gostei de ler. Com o passar dos anos, acabei descobrindo que
gostava de estudar,
descobrir como as coisas são feitas ou acontecem. Percebi que tinha
inteligência para
aprender qualquer coisa que me interessasse. Notei também que minha falta
de interesse na
escola era falta de motivação, pela forma impositiva dos professores,
impingindo regras
rígidas, tratando os assuntos de maneira fria e distante. Quando resolvi
lecionar, repensei o
assunto. As pessoas não são iguais. Para passar a elas o conhecimento e
despertar-lhes o
interesse pela matéria a ser ensinada, é preciso usar a linguagem delas,
aproximar-se o mais
possível de sua idade mental, e, o que é mais importante, transformar as
matérias em
vivência.
Liana estava admirada. Nunca ouvira semelhante teoria. Apesar de tudo,
reconhecia que
tinha uma certa lógica. Se isso funcionasse mesmo, revolucionaria toda a
didática e os
métodos de ensino.
- As matérias são subjetivas. Como transformá-las em vivência?
- Engana-se. Todas as coisas que existem, e nós estudamos o mundo que nos
rodeia,
suas leis físicas e até os valores morais, são matérias vivas que podem e
devem ser
experienciadas.
- É preciso ser muito criativo. Eu não saberia fazer isso!
- É fácil. Tenho certeza de que, se experimentar, ficará fascinada. - Em todo
caso, a idéia de
musicar as tabuadas foi brilhante. Alberto sorriu e seus olhos brilharam
alegres.
- Eles aprenderam logo. Cantar é um enorme prazer.
Por que não aprender com prazer? A curiosidade, a ansiedade de saber vive dentro de cada
um de nós. O que nos desagrada e dificulta a aprendizagem é a forma sem
graça de fazer
isso. Mudando esse conceito, a dificuldade desaparece. Liana admirou-se das
idéias do
professor e mais tarde, ao recolher-se, comentou com Eulália, que ouvira
toda a conversa
com interesse:
- Esse homem é um sábio. De onde ele veio? Como Norberto o descobriu?
- É escritor. Tem livros publicados.
- Gostaria de lê-los. Escreve a respeito de quê?
- Não sei. Norberto não disse.
Liana foi deitar-se pensativa. Decidiu que no dia seguinte iria conversar um
pouco com as
crianças e perceber como eles estavam nos estudos.
Naquele fim de semana, quando Norberto chegou, encontrou a família muito
bem. Eulália
foi logo contando os progressos de Eurico, que assistia às aulas regularmente
e estava
aprendendo sem maiores dificuldades.
- Ainda bem - considerou Norberto. - Passei a semana toda pensando se
havia sido bom eu
deixar um desconhecido aqui em casa enquanto eu estava ausente.
- Não precisava se preocupar. O professor é discreto e é um cavalheiro. Tem
se portado
educadamente. Depois, já encontrou casa. Só ficará mais alguns dias,
enquanto o
proprietário a está pintando.
- Ótimo. Ele me foi muito bem recomendado. É um homem respeitado e tem
posição social
definida.
- É solteiro?
- Acho que sim. Por que pergunta?
- Curiosidade.
- Se fosse casado, teria se mudado com a família, não lhe parece? - É.
Certamente.
No jantar, a conversa fluiu animada com Norberto contando as notícias da
capital, trocando
idéias com o professor. As crianças, como de hábito, comiam em silêncio
enquanto as duas
mulheres ouviam com interesse.
Após a sobremesa, as crianças tiveram permissão para se recolher enquanto
os demais
sentaram-se na sala para o café e mais um pouquinho de prosa antes de
dormir. Passava das
dez quando o professor se recolheu.
Liana foi para o quarto e o casal também.
Liana acordou no meio da noite com sede. Tentou ignorar e dormir
novamente, porém a
sensação de sede não a deixava dormir. Levantou-se e resolveu ir até a copa,
onde havia um
filtro.
Não acendeu a luz e procurou não fazer ruído para não incomodar. A noite
era clara e ela
podia enxergar muito bem o caminho.
Na copa, apanhou um copo, levou-o ao filtro e abriu a torneira. Foi quando
ouviu ruído de
passos. Alguém teria se levantado? Fechou a torneira, tomou a água com
prazer, deixou o
copo em cima da pia. Como não visse ninguém se aproximar, foi até a porta
da copa, olhou
e abriu os olhos assustada. Parado em frente à escada que ia ao pavimento
superior estava
um homem de idade, forte, cabelos brancos, botas e largo chapéu na cabeça.
Seria um ladrão? Não parecia. Por onde teria entrado? Alguém teria deixado
alguma porta
aberta? Ela precisava chamar alguém, avisar Norberto, mas eles estavam
todos no andar de
cima e ela teria de passar por ele.
Foi nessa hora que ele olhou para ela. Liana não se conteve:
- O que está fazendo aqui? Como entrou?
Como ele não respondesse, ela repetiu:
- O que está fazendo aqui no meio da noite?
Ele deu alguns passos em direção a ela, que recuou assustada. Havia algo
nele que a
intimidava. Quando ele estava bem perto, disse com voz rouca:
- Estou em minha casa. Finalmente você voltou! Também veio me cobrar? Só
que desta vez
você não vai mais me deixar!
Aproximou o rosto do rosto de Liana, olhos brilhantes de rancor, e ela
assustada começou a
gritar e gritou mais ainda depois que o viu desvanecer-se diante de seus olhos. Cobriu o
rosto com as mãos e continuou gritando, sem poder sair do lugar.
Em poucos segundos todas as luzes da casa se acenderam e o professor,
Euláha e Norberto
estavam diante dela. Eulália abraçou-a aflita:
- Calma, Liana! Estamos aqui. Calma! O que foi?
Liana abriu os olhos e, vendo-os, foi se acalmando. Seu corpo tremia, e ela
mal conseguia
suster o copo com água que Eulália lhe colocou entre as mãos.
- Vamos, beba um pouco. Calma. Está tudo bem.
Quando ela conseguiu falar, contou em poucas palavras o que havia
acontecido.
- Você sonhou - disse Norberto. - Levantou-se ainda adormecida e sonhou.
- Eu não estava dormindo! Estava até bem acordada. Senti sede e vim tomar
um copo de
água. Ele estava bem ali, em frente à escada.
- Como era ele? - indagou o professor.
- Um homem de idade, forte, cabelos brancos, usava botas de cano alto,
como essas de
montaria, e um chapéu de obas largas na cabeça. O pior foi que, quando lhe
perguntei por
que estava aqui, ele me disse que esta casa era dele.
- Vamos perguntar aos criados se eles conheceram alguém assim - sugeriu o
professor.
Norberto interveio:
- É absurdo. Mesmo que houvessem conhecido, aqui não havia ninguém
quando chegamos.
Depois, as portas estavam bem fechadas, eu mesmo verifiquei antes de
dormir.
- Quando eu gritei de medo, ele sumiu diante de meus olhos e desapareceu.
- O que prova que, se você não estava dormindo, teve uma alucinação - disse
Norberto.
- Eu. tenho certeza do que vi. Era uma pessoa. Ele estava aqui repetiu Liana.
- Agora ele já se foi. Não precisa ter medo - disse o professor. - E se ele
voltar? - perguntou
Liana.
- As portas estão todas fechadas. Não há ninguém aqui. Pode ir dormir
sossegada: ninguém
entrou nem vai entrar. As crianças podem assustar-se. Eurico já é medroso
sem acontecer
nada - tomou Norberto.
Mandei Hilda ficar com eles. Acho que nem ouviram. Estão dormindo.
A custo Liana concordou em ir para o quarto e Eulália ficou com ela algum
tempo até que
estivesse melhor. Sentindo-se mais calma, ela disse:
- Vá dormir, Eulália. Agora já estou bem. Deixarei a luz acesa. Vá descansar.
- Se sentir alguma coisa, pode me chamar.
- Está bem.
Apesar de fazer-se de forte, Liana não conseguiu dormir direito.
Sentia sono, mas, quando estava quase adormecida, estremecia de susto e
acordava. O dia
já estava amanhecendo quando ela finalmente conseguiu dormir.
Na manhã seguinte, o assunto já era do conhecimento dos criados, que
comentavam
abertamente. Entrando na cozinha, Eulália ouviu Maria dizer:
- Foi a alma do coronel Firmino que voltou. Bem que tinham me avisado.
- O Maninho me contou que essa casa era assombrada. Eu não acreditei, mas
agora... -
respondeu Joana, a criada que viera de São Paulo com a família.
Eulália não se conteve:
- Vocês estão inventando histórias. Liana teve um pesadelo. Foi só isso. Não
quero que
assustem as crianças com idéias disparatadas.
- Ela descreveu direitinho o coronel Firmino. Minha avó conheceu ele e me
contou como
era - respondeu Maria. - Foi a alma dele que apareceu aqui, tenho certeza.
- Quem morre não volta mais. Deixe de ser boba. Se continuar repetindo isso,
serei forçada
a despedi-Ia. Eurico é medroso, e se ele se impressionar pode piorar. Liana
teve um
pesadelo e eu não quero ouvir mais ninguém falando em alma do outro
mundo.
- Sim, senhora. Não vou falar mais nada - garantiu Maria. Quando Eulália
saiu da cozinha,
ela disse baixinho para Joana: - Mas que era ele, isso era.
- Melhor não comentar.
- Ele pode aparecer de novo.
- Cruz credo! Nem me fale!
Calaram-se, porque Hilda acabara de entrar.
Os meninos haviam tomado o café e se reunido na sala de aula à espera do
professor.
- Vocês ouviram os gritos ontem à noite? - perguntou Eurico. - Eu ouvi respondeu Nico. -
Me levantei e ia ver o que era quando a Dona Hilda apareceu e disse que não
era nada de
mais. Me mandou dormir.
- Foi tia Liana. Acho que ela estava com medo - tornou Eurico. - Ela viu alma
do outro
mundo - contou Amelinha.
Os dois se interessaram:
- Viu?
- Onde?
Amelinha, observando o interesse deles, fez uma pausa para valorizar mais o
que ia dizer,
depois considerou:
- A alma do coronel. Eu ouvi Maria contando para Joana que ela gritou
porque viu a alma
dele.
- Como é que ela sabe? Já o viu? - indagou Nico.
- A avó dela, que o conheceu, contou como ele era - respondeu Amelinha,
satisfeita por dar
a novidade.
- Então foi por isso. A Liana se assustou.
- Eu ia descer, mas Hilda entrou logo e não deixou. Ela nunca me permite
fazer o que quero
- tornou Eurico.
- Ela quis proteger a gente. E se a alma penada ainda estivesse lá!
Você ia ficar com medo - respondeu Nico.
- Ia. Mas agora ela também viu e eles iam acreditar em mim.
O professor, que entrara na sala e ouvira parte da conversa deles, aproximou-
se
dizendo:
- Estão comentando sobre o que aconteceu esta noite?
- Sim - respondeu Nico.
- Ouvi Maria dizer que tia Liana viu alma do outro mundo - explicou
Amelinha.
- E por isso ela ia acreditar em Eurico. Você também tem tido esses
pesadelos? -
indagou o professor dirigindo-se ao menino.
- Melhor não falar nisso. Sempre que eu falo, eles me levam ao médico e
tenho de
tomar remédios que me deixam tonto.
- Ele é medroso - interveio Amelinha. - Dorme de luz acesa, chora de medo.
Alberto aproximou-se de Eurico e sentou-se a seu lado, dizendo:
- Não precisa ter medo de mim. Não vou mandá-lo ao médico. O que
Amelinha está
dizendo é verdade? Você sente medo do quê?
- Essa linguaruda não sabe guardar segredo. Não vou contar nada perto dela.
- Se você pedir para ela não contar, tenho certeza de que ela vai atender.
Amelinha é uma
menina muito inteligente, vai respeitar sua vontade. Afinal o segredo é seu. Se
dividir com
ela, é porque confia. Voltando-se para a menina, perguntou: - Ele pode
confiar em você!
Sabe guardar um segredo?
- Sei.
- Foi o que pensei. Dividir um segredo é uma grande prova de amizade e de
confiança. Ele pode não ser muito importante para quem escuta, mas sempre
é muito
importante para quem conta. Por causa disso, sempre que alguém confia em
nós um
segredo, devemos guardá-lo e nunca falar dele a ninguém - explicou Alberto.
- Eu entendi. Se alguém me contar alguma coisa e pedir segredo, não vou
contar a
ninguém - respondeu Amelinha.
- Nesse caso, Eurico, você pode contar do que é que tem medo disse o
professor.
- Nico sabe guardar segredo. Ele já sabe de tudo. Mas vocês têm de jurar que
não
vão contar para Hilda, para mamãe ou papai.
Depois que os dois juraram, ele continuou:
- Tenho medo de algumas pessoas que aparecem em meu quarto durante a
noite.
- Aparecem como? - perguntou Alberto.
- Aparecem. Um homem velho, de botas e chapéu, uma mulher com um
chicote. Eles
brigam. Às vezes querem que eu vá embora. Dizem que a casa é deles. Aí eu
acendo a luz e
eles desaparecem.
Alberto estava sério. Eurico descrevera o mesmo homem que Liana vira.
Seria mesmo o
espírito do coronel Firmino, como ouvira os criados comentar? Em todo caso,
tudo levava a
crer que o espírito dele estava mesmo andando por ali.
Ele acreditava na sobrevivência da alma após a morte. Estudara o assunto e
sabia que os
espíritos em determinadas circunstâncias podiam voltar e ser vistos por
pessoas que
possuíam essa sensibilidade. Eurico seria médium?
- Isso vem acontecendo desde que mudaram para esta casa? - indagou
Alberto.
- Eles me perseguem há muito tempo. Mesmo na outra casa. Eu sentia muito
medo.
- Você sabe rezar?
- Hilda ensinou o pai-nosso para fazer antes de dormir.
- Você faz?
- Não adiantava. Por isso eu parei.
- Repetir as palavras sem fé não vai mesmo adiantar. Precisa pensar em
Deus e deixar seu
coração falar. Uma oração sincera sempre dá resultado.
- Minha mãe fala isso - comentou Nico. - Eu sempre converso com Deus
antes de dormir,
pedindo proteção para as pessoas que eu gosto e para mim. Quando acordo,
peço para ele
abençoar e proteger o meu dia. Foi ela quem me ensinou.
- Isso mesmo, Nico. Sua mãe sabe das coisas.
- Eu não sei conversar com Deus. Gostaria de aprender - disse
Amelinha.
- Podemos treinar - concordou Alberto. - Hoje vamos fazer um exercício
para pedir a
proteção divina.
Alberto pediu que todos dessem as mãos, depois fez uma prece pedindo
proteção e ajuda.
Quando acabou, perguntou:
- Então? Aprenderam? Cada um deve fazer do seu jeito, com suas próprias
palavras.
- Acha que Deus vai me ouvir? - perguntou Eurico. - Talvez ele esteja tão
longe que nem
escute.
- Ele está em toda parte. Mas está dentro de sua alma. Por isso ouve com
facilidade tudo
quanto seu coração fala. A alma sempre fala através do coração.
- Meu coração não fala - disse Amelinha colocando a mão no peito.
- Fala, sim. Mas não com palavras, e sim com sentimentos. Sempre que você
sente alegria ou tristeza, é o coração que está falando.
- E quando a gente tem raiva? Também é o coração? - indagou a menina.
- É, sim. Só que ele está dizendo para você olhar melhor as coisas e perceber
que não está
olhando do jeito certo.
- Hilda diz que é errado ter raiva - considerou Amelinha.
- Você não é errada porque sente raiva. Ela só indica que está na hora de
compreender que
as coisas são do jeito que são e não adianta querer que sejam diferentes. Que
você precisa
aceitar os próprios limites, ser paciente consigo e dar-se tempo para aprender
como chegar
aonde você quer.
- Eu fico com raiva de Hilda porque tudo que eu quero fazer ela diz que eu
não posso. Fica
o tempo todo me vigiando - disse Eurico. Essa raiva também é do coração?
- Claro. O que sua alma quer que você perceba quando mostra sua raiva e
você sente? Você
quer ser livre para fazer o que quiser sem ninguém que lhe diga o que e como
fazer. Mas,
como ainda é criança, precisa ser paciente e esperar crescer. Não adianta
querer isso já. Só
vai sentir-se impotente, incapaz.
- A Dona Hilda só quer o seu bem - tornou Nico. - Ela cuida da sua saúde. É
muito
dedicada.
- Ela exagera. Bem podia me deixar em paz - respondeu Eurico.
- Sua alma quer que você entenda também que, quando exagera os sintomas
de sua doença
para que todos façam o que você quer, está provocando mais a preocupação
com sua saúde,
aumentando a vigilância. Se mudar de atitude e não fizer mais desse jeito,
Dona Hilda não
vai mais vigiar e se preocupar com você e sua alma não vai mais criar o
sentimento de raiva
para que entenda isso.
- Eu faço isso para que eles me deixem em paz.
- Não é bem assim. Você exagera seus sintomas de doença para conseguir
dominar,
conseguir que todos façam como você quer.
Seus pais ficam preocupados com sua saúde e Hilda aumenta a vigilância.
Mas é você, com
essa sua atitude, quem está provocando isso. Sua alma deixa que sinta raiva,
perceba que é
ruim, para que descubra e encontre um jeito melhor de obter o que deseja,
sem tentar
dominar os outros. A energia da raiva é a mesma força da coragem, da
ousadia. Essa força,
usada de forma inteligente, vai tornar você corajoso, forte, ousado. E esse
sentimento é
muito prazeroso.
- Todo mundo diz que ele é fraco! - disse Amelinha.
- Ele não é fraco, ele não encontrou ainda o jeito melhor de usar toda a sua
força. Eurico é
muito forte. Todos nesta casa só fazem o que ele quer. Mudaram-se para cá
por causa dele.
Só que ele não está usando sua força do jeito mais inteligente.
- Por quê? Você não disse que eu sou forte? - indagou Eurico assumindo uma
postura mais
firme.
- Você é forte, mas, se estivesse usando sua força do jeito mais inteligente,
estaria mais
sadio e feliz. Você colocou sua força na fraqueza, mas sua alma quer que
descubra que
pode ser forte e viver melhor. É isso que ela está tentando dizer a você quando
se sente
incomodado e com raiva dos excessos de Hilda.
- Nunca pensei que a alma falasse com a gente! - tornou Nico. - Fala. Mas é
preciso saber
ouvir o que ela deseja dizer.
- Como aprender isso?
- É fácil. A alma sempre olha o lado bom. Só vê o bem.
- Mesmo quando faz sentir raiva? - indagou Amelinha.
- Sim. O bem é a linguagem da alma. É a linguagem de Deus. Qualquer
sentimento que ela
expresse e você sinta tem um recado para ensinar você a agir melhor e ser
mais feliz.
- Mesmo quando você acha que é um sentimento ruim?
- Mesmo. Até o ódio quer que você perceba a grandeza do bem.
- Puxa! Eu não sabia disso - ajuntou Nico. - Não é errado odiar?
- Não. Não é errado, mas não é bom. Faz mal. Deixa a pessoa infeliz. Já o
amor é uma coisa boa. Dá alegria, bem-estar. Quando você sente ódio, a alma quer que perceba
o quanto está
longe da felicidade. Por isso, sempre que sentir ódio é bom se perguntar: o
que eu quero
agora, sentir-me mal ou ser feliz?
- Claro que ser feliz - tornou Amelinha. - Eu não quero me sentir mal. Quero
ser sempre
feliz.
- Sua alma está ensinando que para isso precisa escolher a felicidade e jogar
fora tudo que é
ruim. Ficar com o bem.
- Eu não gosto de sentir ódio - disse Nico, pensativo. - Você também sente
ódio? - indagou
Eurico.
- Faço força para não sentir, porque não gosto. Mas às vezes, quando percebo,
já estou com
tanta raiva... Aí, acho que estou errado, que sou um mau menino e que Deus
vai me castigar
por isso. Fico triste. Por isso, procuro esquecer, pensar em uma coisa boa.
- O ódio é um sentimento muito desagradável. Quem o sente perde a paz, e
isso acaba
deixando o corpo doente. Mas você não é errado só porque sente ódio de vez
em quando -
esclareceu o professor.
- Não? Hilda diz que ter ódio é maldade e que Deus castiga - interveio
Amelinha com
convicção. - Eu tenho medo de ser castigada!
- Mas apesar disso você fica com ódio! Eu já vi! - disse Eurico.
- Vamos conversar sobre nossos sentimentos. Quando as coisas ou as pessoas
não fazem o
que nós queremos, do jeito que nós pensamos que deveria ser, muitas vezes
sentimos raiva.
Isso nos faz mal, nos deixa tristes, contrariados, angustiados. Mas ficar com
raiva só vai
tirar nossa paz e não vai mudar nada. Apesar de nossa raiva, as pessoas e as
coisas
continuam do mesmo jeito.
- Isso é verdade - concordou Eurico. - Fico com raiva de Hilda, mas ela
continua igual, e eu
é que me sinto nervoso.
- Percebeu? - disse Alberto. - Você se maltrata, acaba com sua paz, fica indisposto, cria
problemas com as pessoas, e os outros continuam do mesmo jeito. Quem é o
maior
prejudicado?
- Ele! - disseram os outros dois.
- Não só eu, vocês também - revidou Eurico.
- Todos nós fazemos isso quando não usamos bem a inteligência. - Eu quero
ser inteligente!
- disse Amelinha. - Mamãe diz que aprendo tudo com facilidade.
- Todos aprendemos com facilidade. A inteligência é um dom que todas as
pessoas têm -
explicou Alberto.
- Minha mãe diz que se eu não estudar vou ficar burra e que vai nascer rabo e
orelhas de
burro igual ao Pinóquio.
- Você não vai ficar igual a um burro. Você é mulher, vai ficar igual a uma
égua - interveio
Eurico.
- Ninguém vai ficar burro. Todas as pessoas têm inteligência. Mas precisam
aprender como
a usar. Alguns já aprenderam e são mais felizes que os outros que ainda não
sabem.
- A gente pode aprender a ser inteligente? - indagou Nico interessado. - Eu
quero ser
inteligente, fazer muitas coisas boas e ajudar a minha família.
É por isso que às vezes sinto raiva de ser criança e de não saber fazer as
coisas direito.
- É por isso que sente raiva? - indagou o professor.
- É... mas às vezes fico com raiva do meu pai... - parou, envergonhado.
- Pode falar - disse o professor. - Essa nossa conversa vai ser nosso segredo.
Todos juramos
e não vamos falar dela com ninguém.
- É... bem... ele bem que podia trabalhar, pelo menos um pouco!
- Ficar com raiva dele por causa disso não vai fazer com que ele mude e
resolva trabalhar.
Sabe, Nico, a vida é como um jogo. Seu pai escolheu viver assim e pensa que
está sendo
inteligente vivendo sem trabalhar. Acredita que o trabalho é ruim e cansativo.
Ainda não
percebeu o quanto está perdendo nesse jogo.
- Mas eu penso diferente - considerou Nico. - Acho que trabalhar é gostoso e gosto de ser
independente, ter o meu próprio dinheiro, não ser pesado para minha família.
Por que meu
pai não pensa como eu? - Porque as pessoas não são iguais. Cada um é
diferente do outro.
Seu pai é outra pessoa e vê a vida de outra forma.
- Por causa dele toda a nossa família sofre. Às vezes penso que ele não gosta
de nós.
- Não deve pensar assim. Ele gosta da família, do seu jeito. É o melhor que
ele sabe fazer
por agora. Não adianta você esperar que ele faça o que você acha que é
certo porque ele
não vê assim. Está acomodado, não percebe ainda as vantagens do trabalho.
- Gostaria que ele mudasse...
- Um dia ele vai aprender. Todos nós aprendemos. A vida ensina. Você
precisa ter
paciência, compreender seu jeito de ser, não ficar esperando o que ele ainda
não sabe fazer.
Se não esperar que ele mude, não sentirá mais raiva por ele ser do jeito que
é. Se você
pegasse um livro e desse para alguém que nunca aprendeu a ler, ficaria com
raiva se ele não
conseguisse lê-lo?
- Claro que não - respondeu Nico.
- Pois é a mesma coisa. Seu pai ainda não sabe como é bom ganhar dinheiro,
trabalhar, ser
independente. Não adianta ficar com raiva dele só porque ainda não sabe
disso.
- É verdade, professor. Como não pensei nisso antes?
- Por outro lado, ser criança, não poder ainda fazer as coisas do jeito que
você gostaria é só
uma questão de tempo e de paciência. Você está crescendo e um dia estará
adulto, livre
para fazer tudo que quiser.
Ao invés de ficar com raiva, é melhor aproveitar o tempo para aprender o
mais que puder,
preparando-se para quando for usar. Isso é ser inteligente!
- Eu também quero ser inteligente! - tornou Eurico. - Mas não sei para que
devo estudar se
meu pai tem dinheiro, se sou doente e nunca vou precisar trabalhar.
- De onde tirou essas idéias? Os médicos não encontram doença em você!
Sei que quer me animar, mas eu não tenho jeito mesmo. Nunca serei como
os outros
meninos. Todos em casa dizem que sou muito fraco, que não agüento nada.
- Pois eu não acredito nisso. Você é um menino forte, inteligente.
Se quiser, vai poder fazer tudo que os outros fazem - afirmou o professor.
Eurico abanou a cabeça negativamente:
- Não precisa tentar me encorajar. Já me conformei.
- Não quero que se conforme. O mundo tem muitas coisas boas a oferecer
para quem tem a
ousadia de buscar. Tenho certeza de que você vai reagir, sair dessa situação
em que se
colocou e querer tudo a que tem direito. Seu pai é rico, e, mesmo não
precisando ganhar
dinheiro para se sustentar, você não vai agüentar viver toda a vida sem fazer
nada. É
horrível. Interessar-se pelas coisas, criar, aprender, tudo isso faz parte de
nossa natureza. É
um prazer do qual você não vai querer se privar. Tenho notado que você gosta
de aprender.
- Ele ouve as minhas histórias com muito interesse! - disse Nico. - Suas
histórias são
diferentes! Você fala dos passarinhos, das plantas, conta do jeito que eles são.
Aí, eu olho e
vejo que é tudo verdade respondeu Eurico.
- Você aprecia a natureza! - disse Alberto, interessado. - Pode tornar-se um
fazendeiro,
criar gado ou ser um agricultor, plantar e colher.
- Ele pode ser fazendeiro, igual ao coronel Firmino, que construiu esta casa! -
tornou Nico.
- Não quero ser igual a ele. Era um homem mau - respondeu Eurico.
- Como sabe? Você não o conheceu! - retrucou Amelinha.
- Sei porque ele está sempre zangado. Não gosto da cara dele.
- Você pode ser fazendeiro como ele foi, sem ser igual a ele. Fazer do seu
jeito - interveio
Alberto.
- Ser fazendeiro é viver sempre com os passarinhos, as plantas, os animais.
Você ia gostar,
tenho certeza - garantiu Nico. - Seu pai é rico mesmo, pode comprar uma
fazenda e pronto.
- Mas para cuidar dos animais, da plantação, precisa estudar bastante -
esclareceu o professor.
- Vou ter empregados para fazer tudo - resolveu Eurico.
- Os outros vão fazer do jeito deles. Você vai querer tudo do seu jeito. Por isso
tem de
aprender o modo de fazer as coisas para que fiquem como você quer.
Hilda apareceu na porta avisando que era hora do almoço. O professor
levantou-se,
dizendo:
- Eu ia recapitular as aulas da semana, mas fica para segunda-feira. Vamos
parar agora.
Amelinha pôs o dedo nos lábios dizendo baixinho:
- Temos nosso segredo agora. Quem falar vai morrer seco.
- Eu não falo - disse Eurico.
- Nem eu - disse Nico.
O professor aprovou com a cabeça e foram se preparar para almoçar.

Quando Chega a HoraOnde histórias criam vida. Descubra agora