Capítulo 5

2K 91 2
                                    

A partir daquele dia, Nico passou a fazer parte da família de Eulália. Mal
chegava da
escola, colocava os livros sobre a cama e ia para a mansão. Eurico apegou-se
a ele de tal
forma que não queria fazer nada enquanto Nico não aparecesse. Eulália
procurava contentá-
Io, uma vez que Nico exercia uma benéfica atuação sobre o comportamento
do menino. Ao
lado dele, concordava em comer, mostrava-se mais animado, mais
interessado nas coisas.
Havia engordado, estava mais corado e não se cansava como antes.
A princípio Nico, em obediência à sua mãe, só ia para lá depois de haver
almoçado. Mas
Eulália pediu-lhe que fosse almoçar com Eurico e assim ele passou a fazer
suas refeições lá.
Ela pagava todas as semanas a modesta quantia que lhe prometera, mas,
sentindo-se grata
pela dedicação de Nico, mandava alimentos e roupas para sua família.
Com isso, eles deixaram de passar necessidade e Ernestina não precisou mais
trabalhar
tanto para manter a família. Jacinto, satisfeito com a proteção de Dona
Eulália, interessou-
se pelos serviços que Nico prestava na mansão, desejando explorar a
situação.
Ernestina foi categórica:
- O Nico não vai fazer o que você está dizendo.
- Vai, sim. Dizem que o menino só come com o Nico e que a Dona Eulália
está feliz com a
melhora do filho. Vai dar pra ele o que ele quiser! Outra oportunidade dessas
não vamos ter!
Ernestina, enraivecida, olhou para o marido e seus olhos faiscavam quando
respondeu:
- Não se mete com o Nico. A Dona Eulália é uma mulher muito boa. Não
vamos nos
aproveitar da situação, não. Não quero o meu filho fazendo uma coisa dessas!
- Se eu quiser, ele faz! Tem que obedecer!
Ernestina aproximou-se dele, dizendo com voz ameaçadora:
- Não vou tolerar que faça isso! Deixa o menino em paz! Você nunca se
importou com ele.
Precisamos aproveitar a oportunidade. Ganhar dinheiro!
- Por que não procura um serviço pra fazer? É o jeito de ganhar dinheiro, não
é explorando
os outros. O que devia fazer é arranjar um trabalho.
Nossa terra está cheia de mato, por que não planta pelo menos um pouco?
Jacinto reclamou e foi saindo, e Ernestina suspirou, tentando conter a raiva.
Por que se
casara com um homem tão preguiçoso? Não ia deixá-lo atrapalhar a vida de
Nico. Queria
que seu filho crescesse honesto, digno, respeitado pelas pessoas.
Mas Jacinto não desistia, e quando Nico chegava ele logo aparecia,
reclamando do dinheiro
que o menino recebia na mansão, até dos donativos generosos de Eulália.
Nico escapava desgostoso. Por que o pai era daquele jeito? Dona Eulália não
tinha
nenhuma obrigação de sustentar sua família. Entretanto, mandava donativos
porque tinha
um bom coração. Como ele podia ser tão ingrato? Era tão bem tratado na
mansão que ele
sentia até vergonha de receber o dinheiro que ela lhe pagava. Várias vezes
teve vontade de
não receber. Mas sabia que o dinheiro era necessário para as despesas de sua
casa. Por isso,
continha-se.
Depois, ele gostava de Eurico, de Amelinha e das demais pessoas da casa.
Com Norberto
era mais retraído, uma vez que ele só aparecia nos fins de semana e havia até
alguns em que
ele não ia.
De vez em quando Mário aparecia para ver como estavam as coisas na
mansão. Abraçava
Nico com carinho, e o menino notara o interesse do engenheiro pela irmã de
Eulália. Mário
ficava emocionado quando ela chegava, fazia um jeito de quem deseja
agradar, e Nico sabia
que o engenheiro gostaria de namorá-la.
Liana tratava-o com atenção, mas não parecia estar apaixonada. Ela era
muito bonita, e
Nico torcia para que eles namorassem. Gostava de Mário e queria que ele
fosse feliz.
Uma tarde, Eulália chamou Nico e pediu:
Gostaria muito de conversar com sua mãe. Ela poderia vir até aqui
amanhã?
- Pode, sim, senhora. Só que tem um problema...
- Qual é?
- Minha mãe tem medo de entrar aqui na mansão.
- Medo? De quê?
Nico hesitou um pouco, depois respondeu:
- A senhora não sabe, mas é que aqui... bom... as pessoas dizem... - O quê?
- Que esta casa é assombrada.
Eulália desatou a rir, depois perguntou:
- Isso é crendice! Sua mãe parece-me uma mulher inteligente. Ela acredita
nessas coisas?
- Sabe como é, gente da roça acredita em almas do outro mundo.
Depois, teve gente que viu a alma do coronel andando por aqui.
- Bobagem. Nós estamos aqui há quase um ano e nunca vimos nada. Mas, se
ela tem medo,
não precisa entrar. Peça a ela para vir e vamos conversar no caramanchão.
No dia seguinte, Ernestina acompanhou Nico até o caramanchão, onde
Eulália a recebeu.
- Entre, Ernestina. Como tem passado?
- Bem, sim, senhora.
- Sente-se aqui a meu lado. Obrigada por ter vindo. Não fui à sua casa porque
queria
conversar a sós com você. Pode ir, Nico, Eurico está esperando.
Ernestina acomodou-se no banco e esperou. Eulália, depois que Nico se foi,
começou:
- Gosto muito de seu filho. É um menino muito bom. E o mais importante é
que Eurico está
melhorando graças à dedicação dele. Chamei-a aqui para pedir-lhe um
grande favor.
- Pode falar, Dona Eulália.
- Como sabe, meu filho é doente. Temos tentado de tudo para que ele fique
bom. Só agora,
com a presença de Nico, ele começou a melhorar um pouco. Espero que
com o tempo de
venha a sarar. Por enquanto, embora esteja melhor, não tem condições de ser
como os
outros meninos, de ir à escola, por exemplo. Entretanto, meu marido e eu
achamos que ele
precisa estudar. Minha irmã que é professora, ensinou-o as primeiras letras.
Aliás, com grande dificuldade. Não que ele não possa aprender. Isso não. É inteligente.
Mas, como ele
se sente mal, não se pode forçá-Io.
- Certamente.
- Fica cansado, não demonstra interesse pelos estudos. Para dizer a verdade,
ele não se
interessa por nada nesta vida. Agora, com Nico, ele começou a se interessar
por alguma
coisa. Seu filho é muito inteligente e sabe como cativar.
- Ele sempre foi assim. Todo mundo gosta desse menino.
- Pois é. Desejo propor-lhe uma coisa. Quero pagar os estudos de Nico até
ele ficar moço.
Pode escolher a carreira que quiser.
O rosto de Ernestina iluminou-se e ela sorriu satisfeita:
- É o sonho dele! Poderá ir pra uma faculdade?
- Claro. O que ele quiser!
Ernestina pegou a mão de Eulália e levou-a aos lábios entusiasmada: -
Obrigada, Dona
Eulália! A senhora não sabe o bem que está me fazendo. Vou ser grata pelo
resto da vida.
Posso lavar toda a roupa da sua casa de graça.
Eulália sorriu:
- Não será preciso! Ainda não acabei minha proposta. Quero que ele venha
morar aqui!
Ernestina surpreendeu-se:
- Como? Morar aqui? Mas ele pode vir todos os dias. Não precisa morar.
- É que pretendo contratar professores que venham dar aulas aqui em casa.
Quero que Nico
saia da escola e venha estudar com Eurico. Para que tudo isso dê certo, é
preciso que ele
venha morar aqui.
Ernestina ficou um pouco inquieta. Nico era seu apoio em casa. Era com ele
que
conversava todas as manhãs sob a mangueira. A casa iria ficar muito triste
sem eIe.
Eulália prosseguiu:
- Não se preocupe, Ernestina. Nico poderá ir ver a família sempre que quiser.
Não pretendo
tirar seu filho de você. É que ele representa para mim uma porta para a cura
de meu filho.
Até agora nada deu resultado. Tenho esperança de que, se ele ficar com Eurico o tempo
todo, estudando, brincando, vivendo, meu filho vai acabar melhorando. Por
outro lado,
gosto de seu filho e posso dar a ele uma carreira digna. Ele pode se formar,
ganhar dinheiro,
ajudar a família. Seria uma troca: ele me ajuda e eu os ajudo. Penso que
todos nós vamos
ficar satisfeitos.
Apesar da tristeza que a separação causava, Ernestina sentia que não podia
ser egoísta. Nico
tinha o direito de aproveitar aquela oportunidade. Por isso, respirou fundo e
respondeu:
- Da minha parte, concordo. A felicidade do Nico é tudo quanto desejo nesse
mundo. Em
todo caso, vamos perguntar a ele. Tenho medo que ele venha morar aqui...
Teve vergonha de prosseguir. Eulália compreendeu e apressou-se a
esclarecer:
- Faz quase um ano que nos mudamos, e nunca vimos nada. Essa história de
assombração é
bobagem. Você não acredita mesmo nisso, não é?
- Eu acredito, sim. Tenho visto muitas coisas.
- Pois aqui nunca vimos nada. Não vai querer estragar a carreira de seu filho
por causa de
uma bobagem dessas.
- É. Se a senhora garante que nunca viu nada... O povo fala muito mesmo.
Seu marido
também quer que o Nico venha morar aqui?
- Quer. Ele também notou o quanto Eurico melhorou. Também acha que ele
precisa da
companhia de um menino da mesma idade. E seu marido? Vai concordar?
- Deixa ele comigo. Sei como lidar.
A criada apareceu trazendo uma bandeja com refrescos e alguns petiscos e
deixou-a sobre a
mesa. Eulália pediu:
- Peça a Nico que venha aqui.
Ela saiu e Eulália serviu o refresco e os docinhos para ambas. Quando Nico
apareceu, ela
lhe fez a proposta. Os olhos do menino brilharam de emoção, mas ele disse
com delicadeza:
- Não posso aceitar o convite, Dona Eulália. Não quero deixar a minha
família.
Você não vai deixar a família. Vai ficar aqui mais perto de Eurico, mas
poderá ir para casa
ver sua mãe sempre que quiser.
- Minha mãe precisa de mim e eu quero ficar com ela. Mas posso vir bem
cedinho todos os
dias, estudar com o Eurico, fazer tudo que a senhora quiser.
Olhos brilhantes de emoção, Ernestina disse:
- Eu quero muito ficar com você, mas pense um pouco, meu filho!
Você vai poder estudar, se formar, ter tudo que sempre quis.
- Você quer que eu aceite, mãe?
- Eu quero que você seja feliz. Vou sentir a tua falta, mas você vai me ver
sempre.
- Pode ir todos os dias, se quiser - prometeu Eulália.
- Bom, se é assim... eu aceito!
- Muito bem. Assim é que se fala. Tenho certeza de que não vai
se arrepender. Vamos dar a boa notícia a Eurico e Amelinha.
Nico abraçou a mãe, dizendo comovido:
- Vou ver você todos os dias. Pode esperar. E, quando eu for grande, vou
comprar uma casa
linda como essa para você morar com a família. Você vai ver.
Ernestina sorriu alegre. Seu filho ia se libertar daquela vida triste de pobreza.
Um dia ele
seria importante e ilustrado. Valia a pena o sacrifício.
No dia seguinte mesmo Nico mudou-se para a mansão. Tinha pouca coisa:
algumas peças
de roupas, livros, alguns brinquedos que ele mesmo fizera. Seu irmão José
olhou-o com
inveja, mas não perdeu a chance de implicar:
- Vai servir de criado pra aqueles grã-finos, vai ser escravo deles. Eu é que
não aceitava
uma coisa dessas! Agora vou ficar com a cama só pra mim.
Nilce queria saber como seria seu quarto na mansão. Ele prometeu voltar
para contar.
Quando chegou à mansão sobraçando seus pacotes, Nico sentiu muita
emoção. Ele ia morar
naquela casa que tanto admirava! Nunca pensou que isso pudesse acontecer.
Mas era
verdade. Dali para a frente aquela seria sua casa!
Eurico queria que Nico ficasse em seu quarto. Eulália não concordou: - Nico
precisa ficar
bem instalado. Em seu quarto não há cama nem guarda-roupas para ele.
Nico vai ficar no
quarto ao lado do de Manuel.
Eurico não concordou:
- Fica muito longe. Fora da casa. Quero Nico aqui, perto de mim. - Já disse
que não há
lugar.
Mas Eurico irritou-se, exigiu:
- Há lugar, sim. Mande pôr a cama dele aqui.
Eulália não queria outra pessoa dormindo no mesmo quarto. O médico
dissera que Eurico
precisava ficar em um quarto bem arejado, e outra pessoa ali, respirando,
poderia deixar o
quarto abafado. Depois de alguma discussão, ela resolveu:
- Vou desocupar o pequeno quarto ao lado e arrumar para Nico.
Ele vai ficar bem perto, é só abrir a porta.
Ela foi até a porta que ligava os dois quartos e abriu-a, dizendo. - Está vendo?
É como se
ele estivesse no mesmo quarto. Finalmente Eurico concordou. Ela guardara
naquele
pequeno quarto malas, objetos sem uso, fizera dele um pequeno depósito.
Precisava
esvaziá-Io. Começaram a arrumação e ao anoitecer ele pôde instalar-se. O
aposento era
pequeno, coube uma cama, um criado-mudo, uma cadeira e um pequeno
guarda roupas.
Nico estava maravilhado. Não se cansava de olhar o abajur, o tapete ao lado
da cama.
Alisava a fina roupa de cama, o travesseiro macio, as toalhas de banho que
Hilda trouxera,
o sabonete perfumado, a escova e a pasta de dentes. Achou tudo lindo! Era a
primeira vez
que tinha um quarto só para ele!
Eulália entrou dizendo:
- O outro quarto era maior, mais arejado, mas Eurico é impossível! - Não se
incomode,
Dona Eulália. Eu adorei este quarto!
- Amanhã vou mandar colocar cortinas nessa janela e pedir a Liana que
compre algumas
roupas para você.
- Não precisa, não, senhora.
- Precisa, sim. Você agora mora em minha casa, é amigo de meus filhos.
Deve se vestir
como eles.
Nico achava que não precisava, mas não se atreveu a recusar. Ele ia levar
vida de rico!
Assim ficaria conhecendo de perto como eles vivem.
- Eu ainda preciso ir para a escola - esclareceu ele. - Estamos no fim do ano
e, se eu não for
mais, vou ser reprovado. Isso eu não quero.
- Amanhã irei com você até lá resolver tudo.
- A senhora vai à minha escola?
- Vou. Você não vai perder nada. Não vou deixar.
Depois de arrumar cuidadosamente seus poucos pertences no guarda-roupas,
seguido de
perto por Amelinha, que curiosa queria ver tudo que ele trouxera, foram ficar
com Eurico.
Eulália olhava-os com satisfação. A presença constante de Nico haveria de
levantar o
ânimo de seu filho e logo ele estaria curado. Contratara um professor para
ensinar os três.
Liana oferecera-se, mas Eulália não queria dar-lhe esse trabalho. Ela já se
cansava bastante
na escola. Depois, achava que alguém de fora seria levado mais a sério.
Um amigo de Norberto em São Paulo indicara esse professor, principalmente
porque ele era
muito interessado em educação, tinha curso superior. Ele havia combinado
com Norberto
que acompanharia o currículo escolar e que, quando as crianças estivessem
preparadas,
poderiam submeter-se a um exame e conseguir o diploma.
Norberto dissera-lhe que o professor Alberto era escritor, tinha alguns livros
publicados,
escrevia para um jornal de São Paulo, mas que desejava ir morar em um
lugar sossegado no
interior, onde continuaria a escrever. Sua renda era insuficiente para se
manter, e ele
aceitou o emprego que Norberto lhe oferecera.
Viria com Norberto no fim de semana para ficar. Dormiria no quarto de
hóspedes até que
encontrasse uma casa para alugar pelas vizinhanças. Durante a viagem,
Norberto colocou-o
a par dos problemas de Eurico, e Alberto interessou-se bastante.
Foi muito bom ele ter arranjado um amigo - disse.
- É, foi uma reação boa. Ele nunca havia se interessado por nada.
Por isso, Eulália achou melhor que esse menino ficasse lá em casa. Ele é
muito pobre, mas
bem-educado. Tem boa aparência e minha esposa gosta muito dele.
- Farei tudo para ajudar. Seu filho precisa tomar gosto pela vida. Tenho a
impressão de que
ele é muito triste.
- Por que diz isso? Ele tem tudo que um menino da idade dele poderia ter!
- Mas não tem alegria de viver!
- Por causa da doença. Sente-se muito mal.
Alberto não respondeu. Norberto continuou:
- É meu único filho homem! Gostaria muito que ele fosse diferente! Não sei
por que
aconteceu isso comigo!
Alberto olhou seriamente para ele e respondeu:
- Aceitar o que não pode modificar ajuda a conservar a paz.
- É, eu aceito. Que remédio? Esperava um menino vivo, inteligente, esperto,
que praticasse
esporte, que fosse meu orgulho. Eurico é o oposto disso. Mas é filho e não dá
para não
ligar.
- Ele venceu a morte e está lutando para sobreviver, recuperar a saúde.
- Há momentos em que não sei se isso foi bom. Sinto-me tão desanimado
olhando
para ele... Há horas em que penso que ele nunca vai
sarar. Depois, Eulália vive triste,
minha casa é um lugar sem alegria.
- Mas o senhor tem uma menina, muito saudável.
- É. Amélia é saudável até demais. Fala pelos cotovelos, como toda mulher.
Olhando para ela, fico pensando na injustiça da vida. Um tão apagado e outro
tão vivo!
Pelos olhos de Alberto passou um brilho de emoção, mas ele nada disse.
Pensava
em sua vida, nos problemas que carregava dentro do coração.
Chegaram ao anoitecer, e Eulália recebeu-os com delicadeza, cercando-os
de atenções.
Simpatizou logo com os olhos escuros e profundos do professor. Sua figura
elegante, seus
cabelos castanhos ligeiramente ondulados, seu rosto moreno, seu queixo
firme em que havia pequena covinha. Seus lábios abertos em um sorriso largo que mostrava
dentes claros
e bem distribuídos tornavam-no um homem bonito. Além disso, vestia-se
muito bem.
Quantos anos teria? Quando horas mais tarde perguntou ao marido, soube que
beirava os
trinta e cinco.
O que teria um homem como ele ido fazer em uma cidade do interior?
Norberto disse que.
ele era escritor. Mas à primeira vista ele não lhe pareceu nem um pouco
excêntrico. Fazia
votos de que ele se acostumasse e que tivesse paciência com as crianças.
lnstalou-o no quarto de hóspedes já devidamente arrumado para esperá-Ia,
deixando-o à
vontade para tomar um banho e descansar da viagem. Mandaria avisar
quando o jantar
fosse servido.
Alberto não conheceu as crianças naquela noite.
Por causa do cansaço da viagem, o jantar foi servido um pouco mais tarde e
as crianças já
se haviam recolhido.
Nico havia se deitado quando a porta do quarto se abriu e Eurico enfiou a
cabeça
perguntando:
- Já está deitado?
- Estou.
- Estou sem sono. Vamos conversar.
Nico levantou-se e foi até o quarto de Eurico, dizendo:
- A Dona Eulália pediu para irmos dormir cedo. Disse que você precisa
descansar.
- Ela disse. Mas não consigo dormir.
Nico suspirou:
- Ela pode brigar comigo. Dona Eulália é muito boa e só pensa no seu bem-
estar. Melhor
obedecer.
- Ela não precisa saber. Vamos deixar acesa só a luzinha da noite. - Você
dorme de luz
acesa?
- Não gosto de escuro. Não consigo dormir agora. Você vai ficar comigo?
- Está bem. Vamos conversar até você sentir sono. Aí eu vou para o meu
quarto. Sobre o que quer falar?
- Conte aquela história do caçador e da onça.
Mal ele começou a contar, a porta do quarto abriu-se e um vulto entrou. Os
dois se
assustaram, mas Amelinha sussurrou:
- Eu sabia que vocês não estavam dormindo! Quero conversar também.
- Melhor você ir para seu quarto. Mamãe não pode saber - disse Eurico.
- Eu posso guardar segredo! Ninguém me viu.
- Fale baixo e fique quieta. Estou sem sono. Nico está contando uma história.
- Você está com medo de novo!
- É nada! - negou ele nervoso.
- Está, sim. Pensa que eu não sei? Vi como você chora de medo. Eurico ia
revidar, mas
Nico interveio:
- Ter medo não é nada de mais. Todo mundo tem: o rato do gato, o gato do
cachorro, o
cachorro da onça, a onça do caçador...
- Você também tem medo? - indagou Eurico com interesse. - Claro que
tenho.
- De quê?
- De ficar embaixo de árvore quando tem trovoada.
- Por quê? - perguntou Amelinha.
- Porque árvore atrai raio. Se um raio pega uma pessoa, ela fica torradinha.
- Que horror! Por que não põe pára-raios? - continuou a menina. - Porque
isso é coisa da
cidade. Aqui não usa.
- Você tem medo porque é criança. Gente grande não tem - comentou
Amelinha.
- Minha mãe tem medo de alma do outro mundo! - tomou Nico. Ela riu:
- Hilda diz que isso é coisa de gente da roça.
- Não é, não. Eu também tenho medo deles - disse Eurico. Depois, dirigindo-
se a Nico: -
Você não?
- Eu não. Se me aparecesse uma alma penada agora, eu conversaria com
ela. Dizem que as
almas voltam quando querem alguma coisa. Quando a gente ouve e faz o que
pedem, elas
vão embora. Se aparecesse uma alma aqui...
- Você ia correr de medo! - disse Amelinha.
- Ia nada. Encarava ela e perguntava o que ela queria. O Dr. Mário me disse
que tem mais medo de gente viva do que de morto.
- Por quê? - fez Amelinha.
- Porque o morto só assusta e não pode fazer nada; já os vivos roubam,
matam. Eu prefiro
encontrar uma alma penada do que um ladrão - completou Nico.
- Chega de falar nisso! - reclamou Eurico. - Não gosto desses assuntos. Estou
todo
arrepiado! Depois acabo sonhando com eles.
- Você sonha com alma do outro mundo? - perguntou Nico, admirado.
- Ele acha que tem gente no quarto. Hilda disse que o medo o faz ver coisas.
- Vamos falar de outra coisa. Não vai continuar a história? Nico reiniciou a
narrativa e logo
Eurico bocejou, dizendo:
- Estou com sono, quero dormir. Vá para seu quarto, Amelinha. Cada um foi
para seu
quarto. Dali a alguns minutos, Eurico apareceu novamente no quarto de Nico.
- Você está com sono? - indagou.
- Um pouco.
- Eu disse aquilo para Amelinha ir embora. As mulheres não sabem guardar
segredo. Quero
contar-lhe uma coisa.
- Um segredo?
- Sim. Sabe por que eu durmo com a luzinha acesa? - perguntou ele sentando-
se na cama.
Nico balançou a cabeça negativamente. Ele prosseguiu:
- Porque, quando eu apago tudo, as almas do outro mundo vêm me
atormentar.
Nico, que estava deitado, sentou-se na cama.
- Como sabe? Não é uma ilusão? O que a Dona Hilda disse é verdade. O
medo faz você ver
coisas que não existem.
- Se você visse o que eu vi, não duvidaria.
- O que foi que você viu?
- Muitas coisas. Quando eu apago a luz, os vultos começam a aparecer. Uma
mulher
zangada, um homem que ameaça me bater com um chicote.
- Quando a luz fica acesa você não vê nada?
- Bem menos. Às vezes, mesmo com a luzinha eles aparecem. Então acendo
tudo. Aí eles
somem. São eles que não me deixam dormir. - Você não contou isso para a
sua mãe?
Contei muitas vezes. Mas cada vez que eu contava ela me levava ao médico
e ele me
receitava um monte de remédios. Eu tomava e me sentia muito mal. Então
achei melhor
não contar mais. Eles não acreditam mesmo. Não quero tomar aqueles
remédios que me
deixavam tonto, porque aí as almas penadas me atormentam ainda mais.
Impressionado, Nico balançou a cabeça.
- Essa história é esquisita. Será mesmo? Você jura que viu?
- Juro.
- Sua mãe pode morrer seca se estiver mentindo?
Eurico não titubeou:
- Pode.
Nico passou a mão pelos cabelos:
- Então é verdade mesmo! Eu acredito.
- Não vai contar para ninguém?
- Não. Só se você deixar. Nunca perguntou o que eles queriam? . - Deus me
livre! Dá para
saber só vendo a cara deles!
- Você não reza? Pode esconjurá-Ios com uma oração!
- As que eu sei nunca deram certo. Depois, fico com tanto medo, suando, a
cabeça roda, dá
um enjôo. É horrível.
- Pois eu não tenho medo. Agora estou aqui. Quando eles aparecerem, você
me chama. Eu
vou conversar.
- Você é forte. Por isso eu quis que ficasse comigo em meu quarto. - A Dona
Eulália não
quer. Não vamos abusar. Eu fico até você pegar no sono. Depois volto para o
meu quarto.
Se precisar, você me chama. Está bem assim?
- Está. Você é meu amigo mesmo!
Nico levantou-se e acompanhou Eurico até a cama com boa vontade. Depois
deitou-se a
seu lado, dizendo:
- Vou ficar acordado. Pode dormir sossegado.
Eurico sorriu contente. Depois de poucos instantes estava dormindo. Nico
esperou-o
ressonar um pouco. Depois, procurando não fazer ruído, foi para sua cama.
Custou a
dormir. A história de Eurico não lhe saía da cabeça. Começava a achar que
sua mãe tinha
razão dizendo que ele não tinha nenhuma doença, que precisava ir ao curador.
Mas Eulália
não iria deixar, ela não acreditava em almas do outro mundo!

Quando Chega a HoraOnde histórias criam vida. Descubra agora