Capítulo 27

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Amelinha entrou em casa eufórica procurando por Nico. A empregada
informou que ele
não chegara ainda.
- Vou tomar um banho. Assim que ele chegar, avise-me. Não vá esquecer!
Quando ele entrou, Maria deu o recado.
- Está bem. Vou falar com ela.
Fazia seis meses que ele havia se formado, ficara uma semana com a família
no interior e
voltara a São Paulo para começar a trabalhar.
Alugara duas salas e montara seu consultório, onde já tinha alguns clientes, e
o movimento
melhorava a cada dia. Começou a ganhar mais, vestia-se melhor. Pensou em
mudar-se da
casa de Eulália, mas tanto ela quanto Norberto insistiram para que ele ficasse.
Alegavam que o tinham como um filho e não queriam privar-se de sua
companhia.
- Enquanto você for solteiro, não o deixaremos sair. Eu só abriria mão se
fosse para você
morar com sua mãe. Mas sua família não deseja morar em São Paulo e você
pretende
trabalhar aqui. Portanto só vai se mudar quando se casar, isso se quiser.
- Obrigado, Dona Eulália. Mas vocês já fizeram muito por mim. Não desejo
abusar.
- Fizemos uma troca maravilhosa, e nessa troca tivemos mais lucro do que
você. Só a
recuperação de Eurico vale tudo. E não é apenas isso. Conheço meu filho. É
um menino
bom, inteligente, mas um tanto fraco. Sem sua constante presença e seu bom
senso, talvez
ele hoje não estivesse tão bem. Tenho certeza de que tanto ele quanto
Amelinha sofreriam
muito se você nos deixasse. Por isso, peço-lhe que continue conosco.
- Está bem, Dona Eulália. Para dizer a verdade, eu deveria me sustentar,
agora que ganho
meu próprio dinheiro, mas sofreria muito se precisasse deixar vocês.
- Ainda bem, meu filho. Fico aliviada. Não se fala mais nisso. Nico tomara-se
um moço
elegante, bonito, fino. Vestia-se bem e estava economizando. Desejava
comprar uma bela casa para a família.
Subiu para o quarto, trocou de roupa, passou pelo quarto de Eurico, que ainda
não havia
chegado. Ele ainda tinha mais dois anos de faculdade.
Bateu no quarto de Amelinha, que imediatamente abriu:
- Nico, temos de conversar! Aconteceu uma coisa maravilhosa! - O que foi?
- A peça na faculdade. Hoje foi lá aquele diretor de que eu falei.
Ele é profissional mesmo. Já dirigiu muitas peças. Lembra aquela que fomos
ver no mês
passado?
- Lembro.
- Foi dirigida por ele! O diretor da faculdade contratou-o para nos dirigir.
Nem acreditei!
Estávamos ensaiando quando ele apareceu, sentou-se lá calado. Ninguém
sabia quem ele
era. Quando paramos, o Sr. Gabriel nos chamou e apresentou-o.
- Que bom! Essa peça vai ser um sucesso.
- E não é só! Entre e sente.
Amelinha arrastou-o para dentro do quarto e forçou-o a sentar-se. - O que
foi? Você me
assusta!
- Não via a hora de lhe contar. Sabe o que ele fez? Disse que já havia lido a
peça e que eu
fui escolhida para o papel principal. Fiquei muda. Minhas pernas tremiam,
pensei que fosse
desmaiar.
- “Você acha que serei capaz?" - eu disse trêmula.
- Você é perfeita para o papel - respondeu ele.
- Aí me perguntou se eu estava disposta a estudar muito. Disse que eu estava
muito crua e
precisava treinar bastante. Se eu realmente quisesse me dedicar, ele me
ajudaria ensinando
o que pudesse. Marcou já um ensaio para amanhã. Já pensou, Nico?
- Parabéns. Esse diretor deve ser muito bom. Viu logo que você tem talento.
- Você acha?
- Claro. Ele não perderia tempo com você se não fosse isso.
- Puxa, Nico. Vou fazer o papel da protagonista. Eu, que me contentaria com
uma ponta.
Parece um sonho. Trouxe o roteiro para estudar. Você pode me ajudar?
- Claro. Quando quer começar?
- Agora mesmo. Vamos para o salão.
Seu rosto corado e o brilho de seus olhos tomavam-na mais encantadora, e
Nico precisou se
controlar para não beijar aquele rosto que tanto amava.
A cada dia ficava mais difícil para ele controlar seus sentimentos.
A proximidade dela, sua espontaneidade abraçando-o, segurando seu braço,
confidenciando
seus pensamentos íntimos atraíam-no cada dia mais.
Dizia para si mesmo que Amelinha o queria como a um irmão e não deveria
alimentar
nenhuma esperança. Acreditava que, se ela viesse a descobrir o que ele
sentia, se afastaria.
A esse pensamento, Nico estremecia de pavor.
Ele haveria de sepultar esse amor no coração, porque só assim poderia
continuar a desfrutar
não só do carinho dela mas também da amizade de toda a família.
A partir daquele dia eles começaram os ensaios. Ela ia para a faculdade de
manhã,
almoçava lá mesmo e ficava para os ensaios com o diretor e com o elenco.
Depois do
jantar, ela e Nico iam para o salão de festas da casa e ensaiavam.
Eurico divertia-se vendo-os representar, porque, enquanto Amelinha fazia
somente a
protagonista, Nico era forçado a fazer todos os outros personagens, inclusive
os femininos.
A princípio eles haviam insistido para que Eurico participasse, mas ele
recusara:
- Não tenho paciência para esses salamaleques de teatro. Estou ocupado com
um teste
importante que ocupa todo o meu tempo disponível.
- Mas você tem algumas noites livres - disse Nico.
- Você disse bem. Eu tenho algumas noites livres e não vou gastá-Ias dessa
forma. Prefiro a
companhia de Elvira. Aliás, esta noite vamos ao cinema e Dalva irá com ela.
Eu contava
que você fosse conosco. Afinal ninguém gosta de segurar vela!
- Nada disso - protestou Amelinha. - Nico vai ficar comigo ensaiando.
- Veja como ela fala! E você deixa? Ela manda e você não reage? - provocou
Eurico.
- Não estou mandando. Acontece que Nico combinou comigo de ensaiar
sempre que ele
pudesse. Depois, se fosse para sair com alguém interessante eu entenderia, mas com
Dalva...
- O que é que tem Dalva? É bonita e educada. Além de tudo, EIvira disse-me
que ela está
caidinha por Nico. É sopa no mel!
- Não acredito que ele se interesse por aquela lambisgóia. Eurico sacudiu os
ombros e
tentou ignorar as palavras dela:
- E então, você vem comigo?
- Não, Eurico. Eu prometi ensaiar com ela. Não temos muito tempo. Falta
apenas um mês
para a estréia.
Fingindo não perceber o olhar triunfante da irmã, Eurico comentou: - Puxa!
Até parece que
é você quem vai trabalhar na peça! Por que não fala com o diretor? Pode ser
que ele o deixe
fazer uma ponta.
Sem se aborrecer com o tom maldoso dele, Nico tornou:
- Não fique zangado comigo. Explique a Dalva que hoje não poderei ir. Irei
outro dia.
- Nesse caso também não vou. Telefonarei para Elvira.
Nico colocou as mãos nos ombros de Eurico, olhando-o nos olhos enquanto
dizia:
- Comigo não pega. Conheço muito bem esse seu jeito de coitado. Não vou
me sentir
culpado de nada. Por isso, é melhor não entrar nessa. Vá com elas ao
cinema, divirta-se e
pronto. Não vou sair com você apenas para que não perca sua noite. É você
quem deve se
dar ao prazer de fazer o que gosta. Não eu.
Eurico começou a rir, depois comentou:
Sei porque gosto de sair com você. Depois, Dalva vai ficar decepcionada.
- Agora você quer que eu me sinta culpado e fique com pena dela. Não
temos nenhum
compromisso, nem sequer a convidei para sair. E se ela ficar frustrada é
porque criou
expectativas sem fundamentos. Eu vou ensaiar com Amelinha e está
decidido.
- Está bem. Pelo que estou vendo, você leva esse negócio de teatro a sério
mesmo. Nesse
caso, vou indo.
Ele saiu e os dois continuaram ensaiando. A estréia da peça no teatro da
faculdade foi um
sucesso, a tal ponto que o grêmio decidiu repetir o espetáculo vários sábados
seguidos. Por
causa disso, começaram a pensar em levar a peça a outras faculdades.
Amelinha não pensava em outra coisa, e perdeu completamente o interesse
pelos estudos.
- O que eu quero mesmo é ser atriz! - confidenciou a Nico entusiasmada. -
Você não sabe o
que é pisar naquele palco, representar, sentir o interesse da platéia, seus
aplausos.
Nico coçava a cabeça e dizia:
- Pelo menos termine a faculdade. Assim seu pai não ficará tão contra.
- Ele pode ficar contra, mas sei o que quero!
Nico olhava e não respondia. Por um lado não queria que Norberto se
aborrecesse e
implicasse com a vocação dela, mas por outro, quando a via representando
com
naturalidade, como se sempre houvesse feito isso, vivendo seu papel com
brilho e
capacidade, olhos brilhantes de excitação ao colher os aplausos
entusiasmados da platéia,
sentia que essa era sua vocação. Sabia que chegaria um dia em que ela
seguiria esse
caminho e que ninguém a deteria.
O problema apareceu no fim do ano, quando ela não conseguiu aprovação e
o pai descobriu
o quanto ela havia faltado às aulas. Irritado, chamou-a para uma conversa na
qual tentou
fazê-Ia compreender a necessidade de terminar os estudos.
Amelinha, entretanto, havia tomado uma decisão. Recebera um convite para
ingressar no
teatro profissional. O diretor reservara-lhe um papel que não era o principal,
mas tinha boas
possibilidades, e ela, entusiasmada, aceitara-o. Não disse nada aos pais, na
tentativa de
retardar o conflito que sentia inevitável, mas aproveitou a ocasião para se
colocar.
- Papai, vou deixar a faculdade. Desejo ser atriz.
- Nada disso, Amelinha! Você vai terminar os estudos. Se tivesse estudado,
teria apenas mais um ano para concluí-Io. Mas, como foi reprovada, terá dois.
- Não adianta, papai. Não sinto vontade de estudar. Não tenho vocação para
lecionar.
Escolhi essa carreira só para fazer a vontade de vocês, mas a cada dia
percebo que não é
isso que desejo fazer.
- Ser educadora é uma nobre profissão, muito diferente do que ser uma atriz
de segunda
categoria de teatro.
- É uma nobre profissão para a qual não tenho nenhuma inclinação. Eu tenho
alma de
artista, papai. Sempre senti desejo de trabalhar as emoções, de transmitir
sentimentos, de
entender os problemas de relacionamento, de experimentar situações como
se fossem
minhas, de compreender como a vida funciona.
Norberto olhou-a admirado com sua veemência. Mas foi irredutível: - Você
não vai
abandonar os estudos.
- Papai, é inútil gastar mais dinheiro com essa faculdade. Eu aceitei um
convite para
ingressar no teatro profissional, já tenho os documentos. É minha vocação e
preciso dedicar
todo o meu tempo a ela. Não terei condições de estudar nem de freqüentar as
aulas.
- Eu a proíbo de fazer isso.
- Sinto que não aprove, papai, mas eu já o fiz.
Norberto tentou de todas as formas convencê-Ia, inutilmente. Inconformado,
procurou
Eulália, para quem apelou a fim de conseguir o que pretendia. Amelinha
estava decidida e
não voltou atrás.
Norberto, nervoso, pretendia impedi-Ia a todo custo, mas Eulália conseguiu
contornar,
afirmando que era um capricho da filha. Era uma carreira difícil e são raros
os que
conseguem sucesso. Por isso achava melhor dar tempo a que ela
compreendesse e voltasse
atrás. Quando percebesse que o sucesso não vinha, certamente perderia o
entusiasmo e essa
ilusão passaria.
Mas não passou. Amelinha dedicou-se inteiramente ao trabalho, freqüentando
cursos com
grandes atores, levando muito a sério sua carreira. Levantava cedo, ia para o
curso de
dança. Quando não estava no teatro ensaiando, estava estudando não só suas
falas na peça
mas também a vida dos grandes atores, seus sucessos e fracassos.
Nico era seu companheiro habitual. Eurico ia com eles de vez em quando,
mas preferia
dedicar-se a outros entretenimentos.
Bonita, com talento e carisma, ela brilhou nos palcos e o sucesso apareceu, ao
contrário do
que seus pais esperavam. Surgiram viagens, contratos, fotos em revistas da
moda, e
Amelinha viu-se envolvida em muitos compromissos.
Por causa disso, aos poucos foi se afastando não só da família mas também
de Nico, que
vibrava com cada sucesso dela, mas sentia muita falta de sua companhia.
Ele estava indo bem no trabalho, era muito procurado como psicólogo. Nos
dois anos de
formado, ele economizara mas ainda não juntara o suficiente para comprar a
tão sonhada
casa para a mãe.
Amelinha ausentava-se, e ele se sentia sozinho. Eurico convidava-o para sair,
mas ele
recusava. Não encontrava prazer longe de Amelinha, e sofria em silêncio seu
amor
inconfessado.
Fechava-se no salão, onde costumavam estudar juntos, montava o cavalete,
escolhia tintas,
pincéis e passava o tempo pintando. Era a forma de extravasar suas emoções,
e suas telas
ganhavam expressão, luz e força.
Estavam no fim do ano e Eurico conseguiu formar-se. Alberto, Liana e os
dois filhos
chegaram para a solenidade. Amelinha, em viagem pela Argentina, onde
estava se
apresentando com a companhia, telefonara dizendo que ia fazer o possível
para estar
presente no grande dia.
Nico colocou seus quadros em um canto e cobriu-os com panos.
Deixou espaço livre para João Alberto e Rosa Maria brincarem.
Alberto interessou-se em vê-los e não conteve sua admiração. Chamou Liana
e comentou:
- Veja que maravilha! Ele é um gênio. Como pode pintar um quadro assim
sem nunca haver
aprendido?
Liana lembrou:
- Você sabe que ele foi pintor famoso em outra vida. Isso confirma as
informações que
temos.
- É verdade. Isso não pode ficar oculto. Vou conversar com um amigo do
jornal e vamos
ver o que acontece.
Alberto conversou com o colega, que foi até lá e ficou tão impressionado que
em seguida
levou um especialista, dono de uma galeria de arte, para vê-los. Depois de
conversar com
Nico, ele o convidou a fazer uma exposição.
Para surpresa de todos, Nico hesitou.
- Não sei se vale a pena. Para isso eu teria de me dedicar mais, talvez estudar
um pouco.
Acho que não estou pronto.
- Nada disso. Você está mais do que maduro. Há muitos pintores formados
em escolas de
belas-artes que não têm sua força. Faço questão de organizar uma exposição.
Ele ainda hesitava.
- Eu terei de pintar mais alguns, e pintura para mim não é obrigação. Não sei
se quero fazer
isso.
- Façamos uma coisa. Daqui a quinze dias tenho uma exposição em que
apresentarei vários
artistas. Se me permitir, podemos expor alguns de seus trabalhos e vamos ver
como o
público vai recebê-Ios.
- Está bem. Se insiste... Escolha os que quiser e pode levar. Depois que eles se
foram,
Alberto considerou:
- Pensei que você fosse ficar contente em fazer uma exposição. Entretanto,
notei que ficou
hesitante. Por quê? Não confia em sua arte?
- Não sei. Mas ao pensar em expor meus quadros sinto um aperto no coração! Pintar para
mim é tão natural como respirar. Sempre que olho as coisas à minha volta,
até as pessoas,
vejo-as retratadas em cores, como se ganhassem forma, força, colorido,
expressão. A
pintura para mim é um canal para extravasar meus sentimentos, minhas
emoções. Se estou
alegre, eu pinto; se estou triste, eu pinto também. E dessa forma. consigo
equilibrar meu
espírito.
- Talvez você tenha muito de sua intimidade nessas telas e não deseje que os
outros .as
vejam.
- Pode ser.
- Você é alegre, bem-disposto, nunca o vi queixar-se, mas reconheço que
nunca fala de seus
sentimentos. É fechado. Não troca confidências, como Eurico ou Amelinha.
- Não acredito que alguém sinta interesse em saber o que vai em meu
coração.
Alberto colocou a mão em seu ombro e, olhando-o nos olhos, respondeu:
- Eu sinto, Nico. Saiba que o admiro muito. Queria que soubesse que tudo
quanto se
relaciona à sua felicidade me interessa de verdade. E várias vezes tenho
sentido que há
alguma coisa dentro de você que coloca um brilho triste em seus olhos. O que
é?
Nico baixou a cabeça pensativo, ficou calado por alguns segundos, depois
considerou:
- Está dando para notar?
- Você disfarça bem, mas eu o conheço muito.
- É, deixar de ser criança tem seu preço.
- Você é um vencedor. Nasceu em uma família pobre e conseguiu subir na
vida graças a seu
esforço, seu trabalho, sua determinação e coragem. Você só tem motivos
para alegrar-se.
Além disso, é estimado e respeitado.
- Eu sei. Todos os dias agradeço a Deus e a todos vocês que me ajudaram a
conseguir o que
possuo. Saiba que sou muito agradecido à vida, que me deu muito mais do
que mereço.
- Se não é isso, o que é?
Pelos olhos de Nico passou um brilho de emoção.
- Minha mãe sempre dizia que, quando o mal não tem remédio, remediado
está. Portanto,
não adianta falar sobre isso.
- Sua mãe é sábia e sabe o que diz. Contudo, nós nos enganamos muitas vezes
quando
acreditamos que um mal não tem remédio. E nisso é que reside o perigo. Eu
já vi muitos
doentes desenganados curarem-se enquanto outros aparentemente saudáveis
morriam de
repente.
Nico sorriu:
- Eis aí nosso querido professor que assume a antiga posição. - Não fuja do
assunto, nem
queira me confundir. Habituei-me a ler você como um livro aberto, e nunca
vai poder me
esconder nada.
- Agradeço seu interesse, mas, creia, estou bem e não precisa preocupar-se.
- Está bem. Não deseja falar, eu respeito. Mas saiba que estarei sempre aqui
do seu lado
para o que der e vier. Quando quiser conversar, serei todo ouvidos.
O dono da galeria escolheu cinco quadros, mandou colocar neles luxuosas
molduras e os
expôs. O sucesso foi absoluto. Alguns críticos que a princípio haviam ignorado
o novo
pintor começaram a interessar-se.
Houve um dos quadros que saiu em importante magazine e, desde então,
Nico não teve
muito tempo para trabalhar em seu consultório. As encomendas sucediam-se
e, por fim, ele
achou que estava abusando fazendo o salão da casa de Eulália de ateliê e
alugou uma
pequena casa para onde levou seu material de pintura.
Nesse tempo, absorveu-se inteiramente pela pintura, porque, enquanto
pintava, sentia-se
relaxado, esquecia o resto do mundo e também seu amor por Amelinha.
Ela voltara a São Paulo e continuava cada dia mais conhecida como atriz. Foi
folheando
uma revista de moda na casa de Eulália que Nico foi tomado de pânico.
Havia uma foto de
Amelinha ao lado de um ator famoso e a notícia dizia que eles estavam apaixonados.
O que ele sempre temera acabou acontecendo. Procurou controlar-se. Sabia
que um dia ela
se apaixonaria e ele teria de se conformar. Mas, apesar de seu esforço, não se
conformou.
Da janela de seu quarto viu quando ela chegou, depois da meia-noite,
acompanhada pelo
moço do retrato. Ele abriu a porta para ela descer, abraçaram-se e beijaram-
se. Nico pensou
que fosse desmaiar de angústia. Afastou-se da janela tentando acalmar-se.
Sentiu vontade
de ir falar com ela, dizer que ela não podia amar outro homem, que era a ele
que ela
pertencia.
Passou a mão pelos cabelos tentando controlar-se. Ouviu os passos dela na
escada e o
barulho da porta de seu quarto fechando. Respirou fundo, resolveu deitar-se.
Mas ficou
revirando-se na cama.
Eram duas da madrugada quando Nico, insone, nervoso, se levantou e foi à
cozinha para
tomar água. Sentia o peito oprimido e a respiração agitada.
Apanhou o copo, encheu-o e sentou-se na copa tomando a água devagar,
respirando fundo.
A dor era muito grande. Ele percebeu que não poderia suportar ver sua
amada nos braços
de outro. Então resolveu afastar-se, ir embora dali. Já economizara o
suficiente para
construir uma nova casa para a família no terreno que possuíam.
Iria para Sertãozinho. Não pretendia morar com a família. Estava disposto a
viver sua vida
a seu modo, manter sua privacidade. Lá, no sossego da pequena cidade onde
nascera,
continuaria pintando seus quadros, mandando-os para a galeria em São Paulo.
Ficar longe de Amelinha seria um sacrifício doloroso, mas vê-Ia nos braços
de outro seria
um tormento maior. Não se sentia com forças para enfrentar isso.
Ouviu passos, e Amelinha envolta em um robe apareceu na copa. Vendo-o,
assustou-se:
- Puxa! É você? O que está fazendo aí, sentado no escuro?
- Tomando água e pensando na vida.
A claridade que vinha do jardim entrava pelo vitrô e ela não acendeu a luz.
- Também senti sede.
Apanhou um copo de água, sentou-se ao lado dele e continuou: - Foi bom
encontrá-Io.
Quero conversar. Preciso tomar uma decisão.
Nico estremeceu. Tentou desviar o assunto:
- É tarde. É melhor irmos dormir.
- Estou sem sono. E, pelo jeito, você também. Faz tempo que não
conversamos. Tenho
sentido saudade.
Ela havia colocado a mão sobre o braço dele e aproximado seu rosto a tal
ponto que ele
podia sentir seu hálito. Falava baixinho para não acordar o resto da família.
- Eu também. Pensei que fosse só eu a sentir falta de estarmos juntos. Você
tem andado tão
ocupada...
- Você também. É bom estarmos aqui, na penumbra, conversando como
antigamente. Você
se lembra quando íamos conversar no quarto de Eurico lá na mansão?
- Foram os melhores dias de minha vida. Nunca esquecerei. Gostaria que o
tempo não
houvesse passado e fôssemos crianças ainda.
- Pois eu não. Gosto de ser adulta, independente. Por mais saudade que tenha,
agora estou
fazendo o que quero, consegui seguir a carreira que sempre sonhei e meus
pais estão
conformados. Eu seria uma péssima professora. Do jeito que você falou,
deu-me a
impressão de que se sentia mais feliz naqueles tempos do que agora.
- É verdade.
- Não entendo. Você é um vencedor. Está ficando famoso. Tenho ouvido
comentários
elogiosos sobre suas telas. Você é um bom psicólogo, mas como pintor é um
gênio. Não
está contente?
- Estou. É que, quando me recordo de nossa infância, sinto saudade. É só.
- Você estava pensando na vida. Fazendo projetos para o futuro? - É. Decidi
voltar para
Sertãozinho.
- Você?! No momento em que está conquistando fama e reconhecimento
quer enterrar-se no interior? Pensei que planejasse viajar, ir para a Europa, ver o mundo
como sempre
sonhou, e você quer fazer o contrário? Não acredito. Alguma coisa errada
está acontecendo.
O que é?
- Não está acontecendo nada. Estou um pouco cansado da cidade. Creio que
no interior
terei mais inspiração para trabalhar. Vamos falar de você. Até quando a peça
ficará em
cartaz? Li que está nos últimos dias.
- Ficaremos mais duas semanas. Para dizer a verdade, também ando um
pouco cansada.
Gostaria de tirar umas férias. Mas não para ir ao interior. Gostaria de ir para
um lugar
calmo e em boa companhia.
Nico estremeceu. Ela prosseguiu:
- Hoje Wilson me pediu em casamento. Faz algum tempo que estamos saindo
juntos. Ele
sugeriu aproveitarmos essas férias para firmarmos nosso compromisso. Quer
aproximar-se
da família e convidou a todos para irmos a uma fazenda de seu pai.
Nico ficou calado. Tinha receio de que, se falasse, ela notasse sua emoção.
Não
conseguindo dominar a pressão, levantou-se de repente e ela fez o mesmo
dizendo
admirada:
- O que foi? Está sentindo alguma coisa?
Nico sentiu um nó na garganta, e, seja pela cumplicidade da penumbra ou
pela proximidade
dela, não conseguiu conter-se. Abraçou-a com força, beijando-a
apaixonadamente nos
lábios. Ela estremeceu, e ele, sentindo toda a força de sua paixão contida,
beijou-a diversas
vezes apertando-a de encontro ao peito.
Ela se surpreendeu, mas não o repeliu. Ao contrário, correspondeu, e Nico,
sentindo-a
trêmula em seus braços, esqueceu todos os receios e ponderações a que se
habituara.
Quando conseguiu acalmar-se, largou-a dizendo baixinho:
- Desculpe, mas não pude conter-me. Eu amo você, sempre amei.
Sei que é impossível. Reconheço a distância que nos separa. Mas, quando você falou que ia
casar-se, não pude controlar-me.
Amelinha aproximou-se dizendo com doçura:
- Nico, por que nunca me disse? Por que deixou que eu pensasse que éramos
como irmãos?
- Porque é como você me vê. Sei que não me ama. Nunca percebi nada que
pudesse fazer-
me acreditar que isso fosse possível. Mas fique tranqüila. Irei embora e nunca
mais a
incomodarei com meus sentimentos.
- Nico, eu disse que fui pedida em casamento, mas não que havia respondido
sim. Gosto de
Wilson, ele é atencioso, agradável, carinhoso.
Mas, amor, não sinto por ele. Por isso hesitava em aceitar seu pedido. Não
quero que vá
embora por minha causa. Agora sei que não vou aceitar esse casamento.
- Não confunda seus sentimentos, Amelinha. Minha falta de controle
perturbou-a.
Ela se aproximou ainda mais dele, olhando-o nos olhos e dizendo:
- Nico, já tive alguns namorados, já me entusiasmei e pensei até estar
apaixonada algumas
vezes. Fui beijada, mas nunca senti com nenhum deles a emoção que seu
beijo despertou.
Ainda não sei o que é, mas foi como se uma força maior me arrebatasse e eu
queria que
nunca acabasse.
Ele a abraçou novamente e a beijou com paixão. Naquele momento
esqueceram-se de tudo
que não fosse aquele calor no corpo, transbordando, o coração batendo forte
e
descompassado e a vontade de que aquele momento fosse eterno.
Então Amelinha puxou Nico pela mão e levou-o até seu quarto. Fechou a
porta e lá se
entregaram inebriados às emoções que os uniam.
O dia estava amanhecendo quando Nico abriu os olhos. Amelinha, cabeça
encostada em
seu peito, estava adormecida e ele ficou alguns minutos prendendo a
respiração, comovido
com a proximidade dela, olhando o rosto que amava, sem se mexer, com
receio de acordá-
Ia e acabar com aquele encantamento.
Recordando-se do que acontecera, sentiu uma onda de pavor. Ele sucumbira
e arrastara
Amelinha com sua paixão. O que diria ela quando acordasse e se desse conta
do que
acontecera?
Eles haviam se amado com paixão, mas ele temia que quando o entusiasmo
do momento
passasse ela o odiasse. Por que não pôde controlar-se? Ele fora recebido
naquela casa como
um filho e estava traindo a confiança das pessoas que tanto amava.
Remexeu-se inquieto, e Amelinha ainda adormecida abraçou-o com carinho,
apertando-o
de encontro ao peito. Emocionado, Nico beijou seus cabelos com amor,
depois
delicadamente a afastou, ela se virou para o outro lado e continuou dormindo.
Com cuidado, Nico levantou-se e foi para seu quarto. Sentia-se culpado, mas
ao mesmo
tempo as lembranças dos momentos de amor que haviam vivido
emocionavam-no.
O que faria quando todos acordassem? Não se sentia com coragem de
aparecer diante de
Norberto e Eulália depois do que havia feito. O melhor era ir embora.
Escreveria uma carta a Dona Eulália avisando que fora até Sertãozinho ver a
família. Era o
melhor a fazer, porque dali para a frente não se sentia com forças de
conviver com Eurico
como um irmão, nem com Amelinha.
Agoniado, sentindo o peito oprimido, Nico arrumou uma mala, escreveu a
carta, colocou-a
sobre a mesa da sala de jantar. Depois apanhou a mala e saiu sem fazer
ruído, levando a
tristeza e o remorso no coração.

Quando Chega a HoraOnde histórias criam vida. Descubra agora