Amaro Vieira nascera em Lisboa em casa da senhora marquesa de Alegros. Seu pai era criado do marquês; a mãe era criada de quarto; quase uma amiga da senhora marquesa. Amaro conservava ainda um livro, o Menino das Selvas, com bárbaras imagens coloridas que tinha escrito na primeira página branca: À minha muito estimada criada Joana Vieira e verdadeira amiga que sempre tem sido, - Marquesa de Alegros. Possuía também um dagtterreótipo de sua mãe: era uma mulher forte, de sobrancelhas cerradas, a boca larga e sensualmente fendida, e uma cor ardente. O pai de Amaro tinha morrido de apoplexia; e a mãe, que fora sempre tão sã, sucumbiu, daí a um ano, a uma tísica de laringe. Amaro completara então seis anos. Tinha uma irmã mais velha que desde pequena vivia com a avó em Coimbra, e um tio, merceeiro abastado do bairro da Estrela. Mas a senhora marquesa ganhara amizade a Amaro; conservou-o em sua casa, por uma adoção tácita: e começou, com grandes escrúpulos, a vigiar a sua educação.
A marquesa de Alegros ficara viúva aos quarenta e três anos, e passava a maior parte do ano retirada na sua quinta de Carcavelos. Era uma pessoa passiva, de bondade indolente, com capela em casa, um respeito devoto pelos padres de S. Luís, sempre preocupada dos interesses da Igreja. As suas duas filhas, educadas no receio do céu e nas preocupações da Moda, eram beatas e faziam o chique falando com igual fervor da humildade cristã e do último figurino de Bruxelas. Um jornalista de então dissera delas: - Pensam todos os dias na toalete com que hão-de entrar no Paraíso.
No isolamento de Carcavelos, naquela quinta de alamedas aristocráticas onde os pavões gritavam, as duas meninas enfastiavam-se. A Religião, a Caridade eram então ocupações avidamente aproveitadas: cosiam vestidos para os pobres da freguesia, bordavam frontais para os altares da igreja. De Maio a Outubro estavam inteiramente absorvidas pelo trabalho de salvar a sua alma; liam os livros beatos e doces; como não tinham S. Carlos, as visitas, a Aline, recebiam os padres e cochichavam sobre a virtude dos santos. Deus era o seu luxo de Verão.
A senhora marquesa resolvera desde logo fazer entrar Amaro na vida eclesiástica. A sua figura amarelada e magrita pedia aquele destino recolhido: era já afeiçoado às coisas de capela, e o seu encanto era estar aninhado ao pé das mulheres, no calor das saias unidas, ouvindo falar de santas. A senhora marquesa não o quis mandar ao colégio porque receava a impiedade dos tempos, e as camaradagens imorais. O capelão da casa ensinava- lhe o latim, e a filha mais velha, a Sra. D. Luísa, que tinha um nariz de cavalete e lia Chateaubriand, dava-lhe lições de francês e de geografia.
Amaro era, como diziam os criados, um mosquinha-morta. Nunca brincava, nunca pulava ao sol. Se à tarde acompanhava a senhora marquesa às alamedas da quinta, quando ela descia pelo braço do padre Liset ou do respeitoso procurador Freitas, ia a seu lado, mono, muito encolhido, torcendo com as mãos úmidas o forro das algibeiras, - vagamente assustado das espessuras de arvoredos e do vigor das relvas altas.
Tomou-se muito medroso. Dormia com lamparina, ao pé de uma ama velha. As criadas de resto feminizavam-no; achavam-no bonito, aninhavam-no no meio delas, beijocavam-no, faziam-lhe cócegas, e ele rolava por entre as saias, em contato com os corpos, com gritinhos de contentamento. Às vezes, quando a senhora marquesa saía, vestiam-no de mulher, entre grandes risadas; ele abandonava-se, meio nu, com os seus modos lânguidos, os olhos quebrados, uma roseta escarlate nas faces. As criadas, além disso, utilizavam-no nas suas intrigas umas com as outras: era Amaro o que fazia as queixas. Tomou-se enredador, muito mentiroso.
Aos onze anos ajudava à missa, e aos sábados limpava a capela. Era o seu melhor dia; fechava-se por dentro, colocava os santos em plena luz em cima duma mesa, beijando-os com ternuras devotas e satisfações gulosas; e toda a manhã, muito atarefado, cantarolando o Santíssimo, ia tirando a traça dos vestidos das Virgens e limpando com gesso e cré as auréolas dos Mártires.
