XV

567 28 12
                                    

No domingo seguinte havia missa cantada na Sé, e a S. Joaneira e Amélia atravessaram a Praça para ir buscar D. Maria da Assunção, que em dias de mercado e de "populacho" nunca saia só, receosa que lhe roubassem as jóias ou lhe insultassem a castidade.

Nessa manhã, com efeito, a afluência das freguesias enchia a Praça: os homens em grupo, atravancando a rua, muito sérios, muito barbeados, de jaqueta ao ombro; as mulheres aos pares, com uma fortuna de grilhões e de corações de ouro sobre peitos pejados; nas lojas, os caixeiros azafamavam-se por trás dos balcões alastrados de lençaria e de chitas; nas tabernas apinhadas gralhava-se alto; pelo mercado, entre os sacos de farinha, os montões de louça, os cestos de broa, ia um regatear sem fim; havia multidão ao pé das tendas onde reluzem os espelhinhos redondos e trasbordam os molhos de rosários; velhas faziam pregão por trás dos seus tabuleiros de cavacas; e os pobres, afreguesados à cidade, choramigavam Padre-Nossos pelas esquinas.

Já senhoras passavam para a missa, todas em sedas, de rostinho sisudo; e a Arcada estava cheia de cavalheiros, tesos nos seus fatos de casimira nova, fumando caro, gozando o domingo.

Amélia foi muito olhada: o filho do recebedor, um atrevido, disse mesmo alto dum grupo: Ai, que me leva o coração! E as duas senhoras, apressando-se, dobravam para a Rua do Correio, quando lhes apareceu o Libaninho de luvas pretas e cravo ao peito. Não as tinha visto desde "o desacato do Largo da Sé", e rompeu logo em exclamações. Ai, filhas, que desgosto aquele! O malvado do escrevente! Ele tinha tido tanto que fazer, que só nessa manhã é que pudera ir ao senhor pároco dar-lhe os sentimentos; o santinho recebera-o muito bem, estava-se a vestir; ele quis ver-lhe o braço e felizmente, louvores a Deus, nem uma pisadura... E se elas vissem, que carnadura tão delicada, que pele tão branca... Uma pelinha de arcanjo !

- Mas querem vocês saber, filhas? Encontrei-o numa grande aflição!

As duas senhoras assustaram-se. Por quê, Libaninho?

A criada, a Vicência, que havia dias se queixava, tinha ido nessa madrugada para o hospital com um febrão...

- E ali está o pobre santo sem criada, sem nada! Vejam vocês! Para hoje bem, que vai jantar com o nosso cônego (também lá estive, ai, que santo!), mas amanhã, mas depois? Que ele já tem em casa a irmã da Vicência, a Dionísia... Mas, oh, filhas, a Dionísia! Foi o que eu lhe disse: a Dionísia pode ser uma santa, mas que reputação!... É que não há pior em Leiria... Uma perdida que não põe os pés na igreja... Tenho a certeza que o senhor chantre até havia de reprovar!

As duas senhoras concordaram logo que a Dionísia (mulher que não cumpria os preceitos, que representara em teatros de curiosos) não convinha ao senhor pároco...

- Olha, S. Joaneira, disse Libaninho, sabes o que lhe convinha? Eu là lho disse, lá lhe fiz a proposta. É ferrar-se outra vez em sua casa. Que é onde está bem, com gente que o acarinha, que lhe trata da roupa, que lhe sabe os gostos, e onde tudo é virtude! Ele não disse que não, nem que sim. Mas olha que se lhe podia ler na cara que está a morrer por isso... Tu é que lhe devias falar S. Joaneirinha!

Amélia fizera-se tão escarlate como a sua gravata de seda da Índia. E a S. Joaneira disse ambiguamente:

- Falar-lhe, não... Eu nessas coisas sou muito delicada... Bem compreendes...

- Era como teres um santo de portas adentro, filha! disse com calor o Libaninho. Lembra-te disso! E era um gosto para todos... Tenho a certeza que até Nosso Senhor se havia de alegrar... E agora adeus, pequenas, que vou de fugida. Não vos demoreis, que está a missinha a cair.

As duas senhoras continuaram caladas até casa de D. Maria da Assunção. Nenhuma queria arriscar primeiro uma palavra sobre aquela possibilidade tão inesperada, tão grave, do senhor pároco voltar para a Rua da Misericórdia! Foi só quando pararam que a S. Joaneira disse, ao puxar a campainha:

O Crime do Padre Amaro (1875)Onde histórias criam vida. Descubra agora