XVII

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Foi aquele o período mais feliz da vida de Amaro.

"Ando na graça de Deus", pensava ele às vezes à noite, ao despir- se, quando por um hábito eclesiástico, fazendo o exame dos seus dias, via que eles se seguiam fáceis, tão confortáveis, tão regularmente gozados. Não houvera, nos últimos dois meses, nem atritos nem dificuldades no serviço da paróquia; todo o mundo, como dizia o padre Saldanha, andava dum humor de santo. D. Josefa Dias arranjara-lhe muito barata uma cozinheira excelente, e que se chamava Escolástica. Na Rua da Misericórdia tinha a sua corte admiradora e devota; cada semana, uma ou duas vezes, vinha aquela hora deliciosa e celeste na casa do tio Esguelhas; e para completar a harmonia até a estação ia tão linda, que já no Morenal começavam a abrir as rosas.

Mas o que o encantava era que nem as velhas, nem os padres, ninguém da sacristia suspeitava os seus rendez-vous com Amélia. Aquelas visitas à Totó tinham entrado nos costumes da casa; chamavam-lhe "as devoções da pequena"; e não a interrogavam com particularidades, pelo princípio beato que as devoções são um segredo que se tem com Nosso Senhor. Só às vezes alguma das senhoras perguntava a Amélia - como ia a doente; ela assegurava que estava muito mudada, que começava a abrir os olhos à lei de Deus; então, muito discretamente, falavam de coisas diferentes. Havia apenas o plano vago de irem um dia, mais tarde, quando a Totó soubesse bem o seu catecismo e pela eficácia da oração se tivesse tomado boa, admirar em romaria a obra santa de Amélia e a humilhação do Inimigo.

Amélia mesmo, perante esta confiança tão larga na sua virtude, propusera um dia a Amaro, como muito hábil - dizer às amigas que o senhor pároco às vezes vinha assistir à prática piedosa que ela fazia à Totó...

- Assim, se alguém te surpreendesse a entrar para a casa do tio Esguelhas, já não havia suspeitas.

- Não me parece necessário, disse ele. Deus está conosco, filha, é claro. Não queiramos intrometer-nos nos seus planos. Ele vê mais longe que nós...

Ela concordou logo - como em tudo que saía dos seus lábios. Desde a primeira manhã, na casa do tio Esguelhas, ela abandonara-se-lhe absolutamente, toda inteira, corpo, alma, vontade e sentimento: não havia na sua pele um cabelinho, não corria no seu cérebro uma idéia a mais pequenina, que não pertencesse ao senhor pároco. Aquela possessão de todo o seu ser não a invadira gradualmente; fora completa, no momento que os seus fortes braços se tinham fechado sobre ela. Parecia que os beijos dele lhe tinham sorvido, esgotado a alma: agora era como uma dependência inerte da sua pessoa. E não lho ocultava; gozava em se humilhar, oferecer-se sempre, sentir-se toda dele, toda escrava; queria que ele pensasse por ela e vivesse por ela; descarregara-se nele, com satisfação, daquele fardo da responsabilidade que sempre lhe pesara na vida; os seus juízos agora vinham-lhe formados do cérebro do pároco, tão naturalmente como se saísse do coração dele o sangue que lhe corria nas veias. "O senhor pároco queria ou o senhor pároco dizia" era para ela uma razão toda suficiente e toda poderosa. Vivia com os olhos nele, numa obediência animal: tinha só a curvar- se quando ele falava, e quando vinha o momento a desapertar o vestido.

Amaro gozava prodigiosamente esta dominação; ela desforrava-o de todo um passado de dependências - a casa do tio, o seminário, a sala branca do Sr. conde de Ribamar... A sua existência de padre era uma curvatura humilde que lhe fatigava a alma; vivia da obediência ao senhor bispo, à câmara eclesiástica, aos cânones, à Regra que nem lhe permitia ter uma vontade própria nas suas relações com o sacristão. E agora, enfim, tinha ali aos seus pés aquele corpo, aquela alma, aquele ser vivo sobre quem reinava com despotismo. Se passava os seus dias, por profissão, louvando, adorando e incensando Deus, - era ele também agora o Deus duma criatura que o temia e lhe dava uma devoção pontual. Para ela ao menos, era belo, superior aos condes e aos duques, tão digno da mitra como os mais sábios. Ela mesma, um dia, dissera-lhe, depois de ter estado um momento pensativa:

O Crime do Padre Amaro (1875)Onde histórias criam vida. Descubra agora