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Que lágrimas quando Amélia soube a notícia! A sua honra, a paz da sua vida, tantas felicidades combinadas, tudo perdido e sumido nas brumas do mar, a caminho para o Brasil!

Foram as semanas piores da sua vida. Ia para o pároco, banhada em lágrimas, perguntando-lhe todos os dias o que havia de fazer.

Amaro, sucumbido, sem idéia, ia para o padre-mestre.

- Fez-se tudo o que se pôde, dizia o cônego desolado. É agüentar. Não se metesse nelas!

E Amaro voltava para Amélia com consolações muito murchas:

- Tudo se há-de arranjar, é esperar em Deus!

Era bom o momento para contar com Deus, quando Ele, indignado, a acabrunhava de misérias! E aquela indecisão, num homem e num padre, que devia ter a habilidade e a força de a salvar, desesperava-a; a sua ternura por ele sumia-se como a água que a areia absorve; e ficava um sentimento confuso em que sob o desejo persistente já transluzia o ódio.

Espaçava agora de semana a semana os encontros na casa do sineiro. Amaro não se queixava; aquelas boas manhãs do quarto do tio Esguelhas, eram sempre estragadas com queixumes; cada beijo tinha um rastro de soluços; e aquilo enervava-o tanto, que lhe vinham desejos de se atirar também de bruços para a enxerga e chorar toda a sua amargura.

No fundo acusava-se de exagerar os seus embaraços, de lhe comunicar um terror desproporcionado. Outra mulher, de melhor senso, não faria semelhante espalhafato... Mas que, uma beata histérica, toda nervos, toda medo, toda exaltação!... Ah, não havia dúvida, fora "urna famosa asneira"!

Também Amélia pensava que fora "uma asneira". E não ter nunca imaginado que aquilo lhe poderia suceder! Qual! Como mulher, correra para o amor, toda tonta, certa que escaparia, ela, - e agora que sentia nas entranhas o filho, eram as lágrimas e os espantos e as queixas! A sua vida era lúgubre: de dia tinha de se conter diante da mãe, aplicar-se à sua costura, conversar, afetar felicidade... Era de noite que a imaginação desencadeada a torturava com uma incessante fantasmagoria de castigos, deste e do outro mundo, misérias, abandonos, desprezo da gente honrada e chamas do Purgatório...

Foi então que um acontecimento inesperado veio fazer diversão àquela ansiedade que se ia tomando um hábito mórbido do seu espírito. Uma noite a criada do cônego apareceu, esfalfada de correr, a dizer que a Sra. D. Josefa estava à morte.

Na véspera a excelente senhora sentira-se doente com uma pontada no lado, mas insistira em ir à Senhora da Encarnação rezar a sua coroa; voltou transida, com uma dor maior e uma ponta de febre; e nessa tarde, quando o doutor Gouveia foi chamado, tinha-se declarado uma pneumonia aguda. '

A S. Joaneira correu logo a instalar-se lá como enfermeira. E então, durante semanas, na tranqüila casa do cônego, foi um alvoroço de dedicações aflitas: as amigas, quando se não espalhavam pelas igrejas a fazer promessas e a implorar os seus santos devotos, estavam lá em permanência, saindo e entrando no quarto da doente com passos de fantasmas, acendendo aqui e além lamparinas às imagens, torturando o doutor Gouveia com perguntas piegas. À noite na sala, com o candeeiro a meia luz, era pelos cantos um cochichar de vozes lúgubres; e ao chá, entre cada mastigadela de torrada, havia suspiros, lágrimas furtivamente limpadas...

O cônego lá estava a um canto, aniquilado, sucumbido com aquela brusca aparição da doença e do seu cenário melancólico - as garrafadas de botica enchendo as mesas, as entradas solenes do médico, as faces compungidas que vêm saber se há melhoras, o hálito febril espalhado em toda a casa, o timbre funerário que toma o relógio de parede no abafamento de todo o ruído, as toalhas sujas que ficam dias no lugar em que caíram, o anoitecer de cada dia com a sua ameaça de treva eterna... De resto, um pesar sincero prostrava-o; havia cinqüenta anos que vivia com a mana e era animado por ela; o longo hábito tomara-lha cara; e as suas caturrices, as suas toucas negras, o seu espalhafato pela casa faziam como uma parte mesma do seu ser... Além disso, quem sabe se a morte, entrando-lhe em casa, para poupar passos, o não levaria também!...

O Crime do Padre Amaro (1875)Onde histórias criam vida. Descubra agora