IX

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A vida de Amaro tornou-se monótona. Março ia muito molhado, muito frio; e depois do serviço na Sé, Amaro entrava em casa, tirava as botas enlameadas, ficava em chinelas a aborrecer-se. Às três horas jantava; e nunca levantava a tampa rachada da terrina sem se lembrar, com uma saudade pungente, do jantarinho na Rua da Misericórdia, quando Amélia, com o seu colar muito branco, lhe passava a sopa de grãos-de-bico, sorrindo, toda carinhosa. Ao lado a Vicência servia, tesa e enorme, com o seu corpo de soldado vestido de saias, sempre constipada; e de vez em quando, desviando a cabeça, assoava-se ao avental com ruído. Era muito suja: as facas tinham o cabo úmido da água gordurosa das lavagens. Amaro, desgostoso e indiferente, não se queixava; comia mal, à pressa; mandava vir o café, e ficava horas esquecidas sentado à mesa, quebrando a cinza do cigarro na borda do prato, perdido num tédio mudo, sentindo os pés e os joelhos frios do vento que entrava pelas frinchas da sala desabrigada.

Às vezes o coadjutor, que nunca o visitara na Rua da Misericórdia, aparecia ao fim do jantar: sentava-se arredado da mesa, e ficava calado com o seu guarda-chuva entre os joelhos. Depois, julgando agradar ao pároco, repetia, invariavelmente:

- Vossa senhoria aqui está melhor, sempre é estar em sua casa.

- Está claro, rosnava Amaro.

Ao princípio, para consolar o seu despeito, dizia ligeiramente mal da S. Joaneira, provocando, animando o coadjutor (que era de Leiria) a contar os escândalos da Rua da Misericórdia. O coadjutor, por servilismo, tinha sorrisos mudos, repassados de perfídia.

- Ali há podres, hem? dizia o pároco.

O outro encolhia os ombros, com as mãos muito espalmadas ao pé das orelhas, numa expressão de malícia; mas não pronunciava um som, receando que as suas palavras, repetidas, escandalizassem o senhor cônego. Ficavam então soturnos, trocando, a espaços, frases moles; um batizado que havia; o que dissera o cônego Campos; um frontal do altar que era necessário limpar. Aquela conversa enfastiava Amaro: sentia-se muito pouco padre, muito distante da panelinha eclesiástica: não o interessavam as intriguinhas do cabido, as parcialidades tão comentadas do senhor chantre, os roubos da Misericórdia, as turras da câmara eclesiástica com o governo civil; e achava-se sempre alheio, mal informado, nas palestras eclesiásticas em que tão femininamente se deleitam os padres, e que têm a puerilidade duma caturrice e a tortuosidade duma conspiração.

- O vento está sul? perguntava ele enfim, bocejando.

- Sempre! respondia o coadjutor.

Acendia-se a luz; o coadjutor erguia-se, sacudia o guarda-chuva, e saía com um olhar de revés à Vicência.

Era aquela a pior hora, a da noite, quando ficava só. Procurava ler, mas os livros enfastiavam-no; desabituado da leitura não compreendia "o sentido". Ia olhar à vidraça: a noite estava tenebrosa, o lajedo reluzia vagamente. Quando acabaria aquela vida? Acendia o cigarro, e do lavatório para a janela recomeçava os seus passeios, com as mãos atrás das costas. Deitava-se sem rezar às vezes; e não tinha escrúpulos: julgava que ter renunciado a Amélia era já uma penitência, não necessitava cansar-se a ler orações no livro; celebrara o "seu sacrifício" - sentia-se vagamente quite com o Céu!

E continuava a viver só: o cônego nunca vinha à Rua das Sousas, "porque, dizia, era casa que só o entrar nela até se lhe agoniava o estômago". E Amaro, cada dia mais amuado, não voltara a casa da S. Joaneira. Escandalizara-se muito que ela não lhe tivesse mandado pedir para ir às partidas da sexta-feira; atribuíra "a desfeita" à hostilidade de Amélia; e, mesmo para a não ver, trocara com o padre Silveira a missa do meio-dia onde ela costumava ir, e dizia a das nove horas, furioso com aquele novo sacrifício!

···

Todas as noites Amélia, ao ouvir tocar a campainha, tinha uma palpitação tão forte no coração que ficava como sufocada um momento. Depois os botins de João Eduardo rangiam na escada, ou ela conhecia os passos fofos das galochas das Gansosos: apoiava-se então às costas da cadeira, cerrando os olhos, como na fadiga duma desesperança repetida. Esperava o padre Amaro; e às vezes, pelas dez horas, quando já não era possível que ele viesse, a sua melancolia era tão pungente que se lhe intumescia a garganta de soluços, tinha de pousar a costura, dizer:

O Crime do Padre Amaro (1875)Onde histórias criam vida. Descubra agora