Daí a dias, os freqüentadores da botica, na Praça, viram com espanto o padre Natário e o doutor Godinho conversando em harmonia, à porta da loja de ferragens do Guedes. O recebedor, - que era escutado com deferência em questões de política estrangeira, - observou-os com atenção através da porta vidrada da farmácia, e declarou com um tom profundo "que não se admiraria mais se visse Vítor Manuel e Pio IX passearem de braço dado"!
O cirurgião da Câmara porém não estranhava aquele "comércio de amizade". - Segundo ele, o último artigo da Voz do Distrito, evidentemente escrito pelo doutor Godinho (era o seu estilo incisivo, cheio de lógica, atulhado de erudição!), mostrava que a gente da Maia se queria ir aproximando da gente da Misericórdia. O doutor Godinho (na expressão do cirurgião da Câmara) fazia tagatés ao governo civil e ao clero diocesano: a última frase do artigo era significativa - "Não seremos nós que regatearemos ao clero os meios de exercer proficuamente a sua divina missão"!
A verdade era (como observou um indivíduo obeso, o amigo Pimenta), que se não havia ainda paz já havia negociações - porque, na véspera ele vira com aqueles seus olhos que a terra tinha de comer, o padre Natário saindo de manhã muito cedo da redação da Voz do Distrito!
- Oh amigo Pimenta, essa é fabricada!
O amigo Pimenta ergueu-se com majestade, deu um puxão grave aos cós das calças, e ia indignar-se - quando o recebedor acudiu:
- Não, não, o amigo Pimenta tem razão. A verdade é que eu noutro dia vi o patife do Agostinho fazer grande barretada ao padre Natário. E que o Natário traz intriga na mão, isso é seguro! Eu gosto de observar as pessoas... Pois senhores, o Natário que nunca aparecia aqui na Arcada, agora vejo-o sempre aí com o nariz pelas lojas... Depois a grande amizade com o padre Silvério... Hão-de reparar que são ambos certos aí na Praça às Ave-Marias... E é negócio com a gente do doutor Godinho... O padre Silvério é o confessor da mulher do Godinho... Umas coisas pegam com as outras!
Era muito comentada, com efeito, a nova amizade do padre Natário com o padre Silvério. Havia cinco anos, tinha ocorrido na sacristia da Sé, entre os dois eclesiásticos, uma questão escandalosa: Natário correra até de guarda-chuva erguido para o padre Silvério, quando o bom cônego Sarmento, banhado em lágrimas, o reteve pela batina, gritando: "Oh colega, que é a perdição da religião! ". Desde então, Natário e Silvério não falavam - com desgosto de Silvério, um bonacheirão, duma obesidade hidrópica, que, segundo diziam as suas confessadas, "era todo afeição e perdão". Mas Natário, seco e pequeno, tinha tenacidade no rancor. Quando o Sr. chantre Valadares começou a governar o bispado, chamou-os, e, depois de lhes lembrar com eloqüência a necessidade "de manter a paz na Igreja", de lhes recordar o exemplo tocante de Castor e Pólux, empurrou Natário com uma brandura grave para os braços do padre Silvério - que o teve um momento sepultado na vastidão do peito e do estômago, murmurando todo comovido:
- Todos somos irmãos, todos somos irmãos!
Mas Natário, cuja natureza dura e grosseira nunca perdia, como o papelão, as dobras que tomava, conservou com o padre Silvério um tom amuado; na Sé ou na rua, resvalando junto dele, com um jeito brusco do pescoço, rosnava apenas: "Sr. padre Silvério, ás ordens!"
Havia porém duas semanas, uma tarde de chuva Natário fizera repentinamente uma visita ao padre Silvério - sob pretexto que "o pilhara ali uma pancada de água, e que se vinha recolher um instante".
- E também, acrescentou, para lhe pedir a sua receita para a dor de ouvidos, que uma das minhas sobrinhas, coitada, está como doida, colega!
O bom Silvério, esquecendo decerto que ainda nessa manhã vira as duas sobrinhas de Natário sãs e satisfeitas como dois pardais, apressou-se a escrever a receita, todo feliz de utilizar os seus queridos estudos de medicina caseira; e murmurava, banhado de riso: