O padre Amaro voltara para casa aterrado.
- E agora? e agora? dizia ele, encostado ao canto da janela, sentindo o coração encolhido.
Devia sair imediatamente da casa da S. Joaneira! Não podia continuar ali, na mesma familiaridade, depois de ter tido "aquele atrevimento com a pequena".
Que ela não ficara muito indignada -. apenas atordoada; contivera-a talvez o respeito eclesiástico, a delicadeza para com o hóspede, a atenção para com o amigo do cônego. Mas podia contar à mãe, ao escrevente... Que escândalo! E via o senhor chantre, traçando a perna e fitando-o, - que era a sua atitude de repreensão - dizer-lhe com pompa: - "São esses desregramentos que desonram o sacerdócio. Não se comportaria de outro modo um Sátiro no monte Olimpo!" - Poderiam desterrá-lo outra vez para alguma freguesia da serra!... Que diria a Sra. condessa de Ribamar?
E depois, se persistisse em vê-la na intimidade, ter constantemente presentes aqueles olhos negros, o sorriso cálido que lhe fazia uma covinha no queixo, a curva daquele peito - a sua paixão, crescendo surdamente, irritada a toda a hora, recalcada para dentro, torná-lo-ia doido, "podia fazer alguma asneira"!
Decidiu-se então a ir falar ao cônego Dias: a sua natureza fraca necessitava sempre receber forças duma razão, duma experiência alheia: costumava consultar ordinariamente o cônego que, pelo hábito da disciplina eclesiástica, ele julgava mais inteligente por ser seu superior na hierarquia; e não perdera, desde o seminário, a sua dependência de discípulo. Depois, se quisesse arranjar uma casa e uma criada para ir viver só, necessitava o auxílio do cônego, que conhecia Leiria como se a tivesse edificado.
Encontrou-o na sala de jantar. O candeeiro de azeite esmorecia com um morrão avermelhado. Os tições da braseira, cobertos duma pulverização de cinza, revermelhavam vagamente. E o cônego, sentado numa cadeira de braços, com o capote pelos ombros, os pés embrulhados num cobertor, amodorrado no calor do lume, com o Breviário sobre os joelhos, dormitava. Na dobra do cobertor, a Trigueira estirada dormitava como ele.
Aos passos de Amaro o cônego abriu muito devagar os olhos, rosnou:
- Ia adormecendo, hem!
- É cedo, disse o padre Amaro. Ainda não tocou a recolher. Então que preguiça é essa?
- Ah! é você? disse o cônego com um enorme bocejo. Cheguei tarde de casa do abade, tomei uma gota de chá, veio o quebranto... Então que é feito?
- Vim por aqui.
- Pois o abade deu-nos um rico jantar. A cabidela estava de mão- cheia! Eu carreguei-me um bocado, disse o cônego rufando com os dedos na capa do Breviário.
Amaro, sentado ao pé dele, remexia devagar o brasido:
- Sabe você, padre-mestre? disse ele de repente. Ia acrescentar: - Aconteceu-me um caso! - Mas reteve-se, murmurou: - Estou hoje esquisito; tenho andado ultimamente fora dos eixos...
- Você, com efeito, anda amarelo, disse o cônego, considerando-o. Purgue-se, homem!
Amaro esteve um momento calado, a olhar o lume.
- Sabe? estou com idéia de mudar de casa.
O cônego ergueu a cabeça, arregalou os olhinhos sonolentos:
- Mudar de casa! Ora essa! por quê?
O padre Amaro chegou a cadeira para ele, e falando baixo:
- Você percebe... Tenho estado a pensar, é assim esquisito estar em casa de duas mulheres, com uma rapariga...
- Ora, histórias! Que me vem você contar? Você é hóspede... Deixe- se disso, homem! É como quem está na hospedaria.
- Não, não, padre-mestre, eu cá me entendo...