XXII

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O padre Amaro acabara de jantar, e fumava, com os olhos no teto, para não ver o carão chupado do coadjutor que havia meia hora ali estava, imóvel e espectral, fazendo cada dez minutos uma pergunta que caía no silêncio da sala como os quartos melancólicos que dá de noite um relógio de catedral.

- O senhor pároco já não é assinante da Nação?

- Não. senhor, leio o Popular.

O coadjutor recaiu num silêncio, começando logo a coligir laboriosamente as palavras para uma nova pergunta. Soltou-a enfim, com lentidão:

- Não se tornou a saber daquele infame que escreveu o Comunicado?

- Não senhor, foi para o Brasil.

A criada entrou, neste momento, dizendo que "estava ali uma pessoa que queria falar ao senhor pároco". Era a sua maneira de anunciar a presença de Dionísia na cozinha.

Havia semanas que ela não aparecia - e Amaro, curioso, saiu logo da sala fechando a porta sobre si, e chamou a matrona ao patamar.

- Grande novidade, senhor pároco! E vim a correr, que é sério. Está cá o João Eduardo!

- Ora essa! exclamou o pároco. E eu justamente a falar dele! É extraordinário. Olha que coincidência...

- É verdade, vi-o hoje. Fiquei banzada... E já estou informada de tudo. O homem está mestre dos filhos do Morgadinho.

- Que Morgadinho?

- O Morgadinho dos Poiais... Se vive lá, ou se vai pela manhã e vem à noite, isso não sei. O que sei é que voltou... E janota, fato novo...

Eu entendi que devia avisar, porque pode estar certo que ele, mais dia menos dia, dá pela Ameliazinha lá na Ricoça... É no caminho para casa do Morgado... Que lhe parece?...

- Forte besta! rosnou Amaro com rancor. Quando não serve é que aparece. Então por fim não foi para o Brasil?

- Pelos modos, não... Que a sombra dele não era, era ele mesmo em carne e osso... A sair da loja do Fernandes por sinal, e todo peralta... Sempre é bom avisar a rapariga, senhor pároco, que se não vá ela plantar de janela...

Amaro deu-lhe as duas placas que ela esperava - e daí a um quarto de hora, desembaraçado do coadjutor, ia no caminho da Ricoça.

···

Batia-lhe forte o coração quando avistou o casarão amarelo, pintado de novo, o largo terraço lateral em linha com o muro do pomar, ornado de espaço a espaço no parapeito de vasos nobres de pedra. Ia enfim, depois de tão longas semanas, ver a sua Ameliazinha! E já se alvoroçava à idéia das exclamações apaixonadas com que ela lhe cairia nos braços.

Ao rés-do-chão eram as cavalariças, do tempo da família morgada que outrora ali habitara, agora abandonadas às ratazanas e aos tortulhos, recebendo a luz por estreitas janelas gradeadas que quase desapareciam sob camadas de teias de aranha; entrava-se por um imenso pátio escuro, onde havia longos anos se acastelava a um canto toda uma montanha de pipas vazias; e o lance de escadaria nobre, que levava aos aposentos, era à direita, flanqueado de dois leõezinhos de pedra, benignos e sonolentos.

Amaro subiu até um salão de teto de carvalho apainelado, sem mobília, com a metade do soalho coberta de feijão seco.

E, embaraçado, bateu as palmas.

Uma porta abriu-se. Amélia apareceu um instante, toda despenteada e em saia branca; deu um gritinho, bateu com a porta - e o pároco sentiu-a fugir para o interior do casarão. Ficou muito desconsolado no meio do salão, com o seu guarda-sol debaixo do braço, pensando na boa familiaridade com que entrava na Rua da Misericórdia - que até pareciam as portas abrir-se de si mesmo e o papel das paredes clarear-se de alegria.

O Crime do Padre Amaro (1875)Onde histórias criam vida. Descubra agora