II - Vidros quebrados de Outro Mundo

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   Desde que se tornaram amigos verdadeiros, há 4 anos, os três primos eram praticamente inseparáveis. Já não eram mais crianças: Bruna era uma moça de 14 anos, sua irmã tinha 16 e Richard, 17 e meio. Elas se mudaram de São Paulo para Belo Horizonte, assim poderiam ficar próximas dele, e pelo jeito, não se arrependeram nem um pouco. Agora, estudavam em um colégio cheinho de caras bonitos, e ambas planejavam namorar. Rick amava sua liberdade, dizendo que namorar era perda de tempo.

No cursinho, todas as meninas queriam alisar seu cabelo, que havia ficado longo e com leves cachos. Todas elas falavam: " seu cabelo é lindo"," Posso cheirar?","Me dá um pedacinho?", "Deixa eu passar a tesoura e fazer peruca?". Elas não o queriam, queriam era o cabelo longo e divoso. Richard se arrependia de não ter cortado antes, mas no fundo, estava mais feliz que pinto no lixo.

- Você parece um príncipe, filho! - mimava a velha Carolina.

De um lado, os planos das princesas, do outro, o príncipe solitário. O constante tema das conversas no fim de tarde depois do curso sempre faziam com que se deslocassem da realidade e até arranjassem briga. Falavam sobre os mais variados monstros e troféus, os professores que mais arrancavam risadas, etc. A velha avó dos jovens sempre apreciou a interação entre eles, era  igual rapadura: é doce, mas não é mole e ainda pode te fazer perder um ou dois dentes.

Uma tarde, ela chamou os netos para lhe visitarem na semana de feriado prolongado. E eles vieram, sem saber da grande furada que haviam acabado de entrar....

A velha senhora acomodou os jovens na sala, e foi até o quarto buscar uma pingentes. Quando voltou, entregou-os aos netos, que ficaram confusos.
- Tá de brincadeira... - resmungou Sophia.
-  Vó, a senhora tá caducando.
- Cacos de vidro!? Que absurdo! - disse Bruna, arredando o caco para longe.

A idosa riu.

- Seus bobos... Não são simples cacos de vidro. - ela se pôs à explicar. - São cacos de um espelho lendário, destruído há 200 anos. O Espelho de Thanatos, feito na Grécia, permite que os vivos vejam o mundo silencioso dos mortos. Quando um rei o roubou para saciar a saudade de sua falecida esposa, o usou, e não satisfeito com o resultado, o quebrou. Ele podia ver o fantasma dela, mas queria tocá-la.
- Então a gente vai ver fantasma.... Mas um colar feio desses não vai adicionar nada na minha vida!
- Eu sei, Bruna. No começo, eu também pensava assim, mas isso é o presente mais útil que posso te dar.

E fez-se um longo e desconfortável silêncio. Sophia apertou o caquinho por pura curiosidade, e logo veio a surpresa: todos os cachorros que sua avó teve e que passaram dessa para a melhor estavam na sua frente. Como era comum o lance de "Maria vai com as outras", os outros fizeram o mesmo. Bruna e Sophia ficaram admirando os cães, enquanto Rick esperava algo acontecer. Levou tempo, e apareceu uma figura, sentada no pé da escada. A figura o fitava com toda a alegria, vendo o jovem descobrir seu mundo.

Cães, gatos e pássaros com auras azuis corriam pela sala de estar, fazendo algazarra com suas novas amigas humanas, enquanto Rick via a cena, decepcionado, e Carolina, não via absolutamente nada.

........

A figura da escada logo chamou a atenção dos três primos. Eles não faziam a menor ideia de quem poderia ser, e por um instante, pensaram ser um fantasma qualquer.

- Vó, quem é aquele ali na escada?
- Conhece ele?

A velha olhou por cima dos óculos com cara de quem aprontou uma e riu outra vez.

- Eu não consigo imaginá-los como caçadores sérios por si mesmos, especialmente você, Rick.
- Como?
- Quem está na escada é nada mais nada menos do que meu tataratataravó.
- Mas ele não é velho. - comentou Sophia.
- Heitor morreu jovem, por volta dos 24 anos.

O fantasma deixou de ser um borrão azul, e tomou forma. Era um homem considerado baixo para os padrões atuais, vestindo calças negras com finíssimas listras verticais brancas; calçava longas botas de aço (pertencentes à famosa "armadura que não anda", localizada na casa de uma das filhas de Carolina.); uma camisa de mangas compridas, do mais escuro tom de roxo; por cima da camisa, vestia um colete de couro negro com botões dourados e por cima deste, usava um casaco escuro e desabotoado.  O homem tinha cabelos prateados e cacheados, descendo pelas costas como uma cartada vinda da lua, com pouquíssimos fios castanhos, e seus olhos eram escuros, com o contorno da íris branco. Sem barba e com quase que nenhuma linha de expressão, Heitor era elegante e imponente.

- Ele é meio fato, vó. - comentou Sophia. Ela nunca imaginou que um fantasma poderia ser um galã.
- E o que ele tá fazendo aqui? - perguntou Richard.
- Vai te ajudar á ver a vida de outro jeito, filho. Hora de crescer e enfrentar o bicho de sete cabeças.

Horas mais tarde, os jovens conversavam com seus novos amigos: Sophia brincava com Cinderella, uma LuLu da Pomerânia, Bruna tentava alisar o pêlo de Ravensa, a Jackaloupe (um coelho com chifres de cervo.) que fez companhia para seu bisavô quando ele cruzou o cerrado, e Rock garimpava o passado com seu ancestral.

- Posso te chamar de vô?
- Tanto faz. Mas só não ouse me chamar de senhor. Eu não sou velho.
- Tá. Por que seu cabelo é dessa cor?
- Longa história. Em simples, é o motivo pelo qual morri.
- Conte-me mais... - ordenou Rick, bancando de mafioso.
- Não sou obrigado à tal.

A curiosidade inundou a mente do jovem, que iria estourar à qualquer momento. " O que devo perguntar primeiro?" . Heitor se sentou ao lado dele, vendo perdido em meio à terra da confusão.

- O que foi, moleque?
- Como era sua vida? Conheceu nobres? Viajou pelo mundo? Foi templário?
- Tudo à seu tempo, sim?
- Tá...
- Minha vida era boa, ou assim Eu achava. Era o início de 1800, e uma segunda caça às bruxas havia de iniciado. Eu vi meu emprego de caçador ser tomado, junto com minha honra. Não tive escolha à não ser apelar para a magia.
- Você era poderoso?
- Até demais. Um velho amigo uma hora me disse: pare com isso, não vale o esforço. E eu o ignorei. Quando houve o estouro dos monstros, vi a oportunidade de ser o melhor. Ledo engano! Nunca deveria ter sido cegado pelo ego...
- Anda velho! Conta logo o que houve!
- A bruxa controlava toda e qualquer magia, e eu não fazia ideia de tal coisa. Ela me matou antes que eu pudesse fazer algo.

Richard baixou a bola, e pensou se poderia haver alguma coisa assim. Concluiu que a bruxa não era forte, e que seu ancestral havia sido facilmente consumido pelo poder. Heitor olhava melancolicamente para o chão da sala, quando fora interrompido pelo seu descendente.

- Como é ser um fantasma?
- Perdão?
- Sabe comé', atravessar parede, sair voando por aí, espionar a vida alheia sem ser visto...

O fantasma suspirou. "Céus, como é lerdo!".

- Não é bem assim, menino.
- Menino!? Eu tenho é 17 anos, seu velho!
- Está bem... Bom, voltando à tua pergunta, é uma solidão boa.
- Explica.
- Deixe-me ver... Você se torna solitário, não há ninguém que saiba onde é seu túmulo e pouco falam de ti. O certo seria ficar triste, mas você aproveita a liberdade que lhe é dada à nenhum custo. Essa solidão não lhe pede que abra mão de tudo, ela te dá outra possibilidade, de viver fora do mundo material.

O jovem ficou imaginando o que poderia ser a verdadeira liberdade, e por um instante, desejou tê-la, mas hesitou horrores. Teria de morrer de quisesse ser como Heitor, o que era inaceitável. Por fim, quis ter privacidade para conversar com a galera no Discord, e pediu "educadamente" para ficar só. Heitor virou uma bolinha flutuante, azul-claríssima, e sumiu no escuro.

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