O Dia do Pronunciamento

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Hoje é dia de pronunciamento. A cidadela está definitivamente lotada, e isso é uma coisa que eu detesto. Eu estou olhando toda a cidade aqui de cima, debaixo dessa árvore com sombra, mas eu aposto que se eu descesse do penhasco agora pra ir lá embaixo, ia parecer que eu estou dentro de uma lata de sardinha. Eu sinto a brisa beijando meu rosto. Tão tênue, suave. Não é a toa que esse é o meu lugar preferido. A floresta. É aqui que eu consigo me esconder, da rotina. Eu poderia ficar aqui em cima, apoiada nessa árvore o dia inteiro apenas olhando para baixo, nesse grande penhasco, o quanto a cidade é pequena, desde o riacho até o grande muro.
Por um instante, fecho os olhos e acho que com pouco esforço conseguiria pegar no sono. Isso é tão bom. Faz dias que não consigo dormir direito, por causa daquele sonho. Eu fico sempre tão cansada, e tenho sempre de trabalhar pra satisfazer a quem não me dá a mínima. Trabalhar pra quem me trata como inseto, sempre jogada ao quem dará. Isso cansa. Esse é mais um motivo que me traz aqui. Meu ponto de escape. Só meu. Acho que ninguém vem aqui. É difícil de escalar. Eu juro que se minha mãe me visse subindo esse penhasco, ela dava um treco antes mesmo de eu chegar aqui no topo.
De repente, ouço algo. Abro meus olhos, e olho ao meu redor. Nada. Essa sensação de estar sendo vigiada. É tudo tão estranho. Como se alguém seguisse todos os meus passos. Já não basta os soberanos, que ficam na cola de todo mundo, sempre lendo nossas mentes, sabendo de todo os segredos, É, definitivamente estranho.
Todo mundo espera o dia do pronunciamento, ou o dia de um evento importante. Sinceramente, eu preferia estar trabalhando. Não é sempre que eu consigo fugir um pouco, sem que ninguém descubra. Eu demorei anos pra conseguir ser tão furtiva a ponto de guardar o que penso, sem ninguém saber, e conseguir fugir sem ninguém ver. Geralmente, os dias de pronunciamento são mais agitados. Todo mundo está pensando no que vai ser dito pelo vice - regente, então ninguém percebe se falta uma ou outra pessoa ali ou aqui. O que me preocupa é que isso está acabando. Em breve vou fazer dezessete anos. Quando você completa dez anos, você é obrigado a trabalhar em algum lugar (na verdade, já começamos cedo, com sete ou oito anos), aprendendo alguma coisa ali ou aqui, sempre com um ou dois soberanos vigiando, pra garantir sua segurança, ou melhor, pra garantir que você não vá fugir desse lugar horrível que chamam de primeiro estágio. O segundo estágio, é quando você completa dezesseis anos, e passa um ano da sua vida acompanhando um mestre de oficio, ou seja, você ganha aulas de alguma profissão, mas mesmo assim, sempre vigiado por algum soberano, não sei porque, já que de um jeito ou de outro você uma hora vai ter que prestar contas mesmo. O terceiro estágio, é quando você completa dezessete anos, e tem que escolher o que você vai fazer, ganhando um emprego. Na maioria das vezes, as pessoas são demitidas com dois ou três meses de trabalho, porque é difícil conseguir se manter num emprego sem nunca desejar matar um soberano de raiva. Eles gostam de pisar em nós, na minoria, porque não fomos abençoados com o tal poder, e geralmente, eles fazem maldades horríveis, então ou você pede demissão porque você quer, ou você faz algo pra ser demitido logo, ou um soberano muito implicante (isso é o que mais acontecesse) dá um jeito de atrapalhar você. Se você for demitido do seu emprego, você é forçado a trabalhar pro governo, e o serviço é bem mais pesado. Pelo menos eles dão comida pra gente.
Minha irmã mais velha, trabalha dia e noite pra esse bando de nojentos do governo. Quando ela escreve. ela diz que gosta, e que é até legal, mas eu duvido muito que ela goste de verdade. Ela é tudo que eu tenho, já que papai morreu na grande guerra,e nunca conheci minha mãe, que morreu no meu parto. Ela me criou, enquanto deu, como uma verdadeira mãe. Devo muito a ela, e sinto saudades. Eu me lembro exatamente de quando ela partiu. Eu tinha dez anos. Ela disse pra mim: " você já está grandinha, chegou a hora de se virar. Tenho que ir. " E então, ela se despediu com um abraço forte e um beijo na testa, deixando apenas um relicário com uma foto de nossa mãe, uma sua e outra de nosso pai. Eu, como era pequena, não entendi muito bem, e tudo que eu fiz foi dar um tchau. Não fiz mais nada. Nem dei nada a ela. Ela foi embora sozinha, sem nada. Apenas com minhas lágrimas no seu vestido de retalhos. Desde então, eu nunca mais a vi. Só falo com ela de vez em quando, quando ela tem dinheiro pra comprar papel, e quando eu consigo roubar papel pra escrever. Mesmo assim, ainda escrevo pouco, já que tive de aprender sozinha com um livro velho que eu achei jogado no meio da feira.
Mais e mais gente cruza a esquina. É, acho que é hora de descer. Um pequeno ruído faz com que eu me vire instantaneamente. A única coisa que consigo ver é um vulto, como um borrão. Passo a mão em uma adaga, presa na minha cintura.
- Quem está aí?
Ninguém responde. Deve ser só um esquilo - digo a mim mesma enquanto começo a me preparar pra descer - ficar sem dormir vai acabar me deixando maluca.
Quando chego aqui em baixo, olho pros lados, e me certifico de que ninguém me viu, embora a essa hora eu já devesse estar no grande intervalo (nos dias atípicos, os intervalos são maiores, então eles tendem a começar mais cedo, para que todos consigam cumprir com suas obrigações e comparecer ao evento da vez), então eu acho que ninguém sentiu a minha falta. Prossigo a caminhada até o anfiteatro, passando por ruas menos movimentadas, para evitar o fluxo, com o sol escaldante na minha cara, quase arrancando meu couro fora, até que viro para a Jansen com a Trèsse, e chega a hora mais desconfortável, onde a multidão se prolifera como um vírus. Tento andar, e a multidão me arrasta, me leva, sem a menor dificuldade. Todos apressados para chegar logo ao local da grande pronunciação, e conseguir se assentar em um bom lugar no anfiteatro. O sol é tampado pela multidão, que vai e vem, se arrastando, se empurrando, até que consigo me desvencilhar no meio desse mar de pessoas. Cheguei. O anfiteatro. É o maior lugar dessa cidade (que ainda está inteiro, já que tudo foi destruído na grande guerra), em vista de outros edifícios, já que esse é tão antigo que ninguém sabe ao certo sua idade. Dizem que é o lugar mais moderno daqui, já que para o tempo em que foi construído, sem muita tecnologia, com grandes pedaços de metais, gesso e pedra, esse lugar é mais do que chamativo. Qualquer um vem a concordar, que isso aqui é um luxo. Pena que mal utilizado.
Os soberanos estão em todos os possíveis cantos. Aqui. Ali. Lá. Como é o dia do pronunciamento, eles estão doidos para que algo aconteça, e eles possam sujar suas mãos de sangue, embora eles tenham passe livre para o fazer quando bem entenderem, já que os soberanos não tem nada a perder com os pobres submissos. Sempre bem vestidos, e com armas (inúteis, já que poderiam matar qualquer um apenas com o poder da mente), para caso precisem lembrar a nós submissos quem somos, o que é praticamente impossível de esquecer, já que somos tão diferentes.
Os únicos lugares pra sentar são aqui em cima, já que os lugares da frente são os usados pelos soberanos, que possuem esse outro privilégio. Me sento na última fileira, logo aqui, na de cima, onde há um único lugar disponível, no pior deles, eu acho, já que o calor aqui é o mesmo que sinto lá fora. Os únicos que não estão sofrendo com isso, são os soberanos, que se sentam em lugares onde são servidos com o que quiserem, além de ter uma sombra fresca e aconchegante.
A multidão é gigantesca, e quase não consigo enxergar. Tudo o que consigo ver, são os hologramas, exibindo o símbolo dos soberanos, enquanto a programação ainda não começa, e uma senadora está apenas enchendo a linguiça lá na frente, dizendo alguma coisa que faz a multidão bradar (não consigo ouvir nada, já que as caixas de som são tão ruins que soltam ruídos miseráveis que não se ouvem nem a um centímetro de distância, e os poucos chiados que consigo entender, são interceptados pela multidão, que grita, já que os soberanos jogam pão e umas miseras moedas para que eles gritem mais e mais forte, satisfazendo o desejo dos pronunciantes de sentir mais poder, com o clamor desesperado da multidão).
- Senhoras e senhores, sejam bem vindos ao grande pronunciamento - consigo ouvir e ver, pelo holo que uma regente está falando, em cima do palanque, num pequeno instante de silêncio, antes da multidão gritar em resposta. De um segundo para o outro, os gritos são interrompidos, e os holos desligados. O silêncio é preenchido pelo medo. Me levanto, e fico meneando com a cabeça daqui e dali, tentando achar uma brecha pra enxergar, já que todos, inclusive eu, estamos de pé, curiosos. Quando consigo entender, pasmo, assustada com o que acabo de ver. É inacreditável. Lá na frente, do palco, uma cabeça cai e gira longe de seu corpo, até parar onde todos possam ver. É o vice regente, morto. Gritos de desespero da multidão são contidos pelos soberanos, tentando acalmar os cidadãos, mas pelo semblante deles, consigo ver que eles também estão assustados, com medo do que aconteceu. Tudo que vejo, com meus olhos arregalados são pessoas mascaradas fugindo, e lá de baixo, muitos soberanos correndo atrás. De repente, os holos são ligados novamente, e nele uma mensagem: a revolução está por vir.

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