Escaleto

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Ela encarava o escaleto que um dia fora seus sonhos de menina como, marinheiro num barco a deriva.

Quase sentia o sem sentido habitual de quem nada sabe do que faz.

Ela acorda, abre seus olhos, porém, a mente persiste enclausurada. Mente quadrada. Mente encaixotada.

Hipocritamente pensa em sua liberdade. Mas, já dizia o Sartre: Somos condenados a ser livres.

Somos prisioneiros de nós mesmos, com as grades mais inquebráveis que existem, as construímos.

Ela vivia sem, de fato, viver. Não ia para onde queria. Não comia o qie tinha vontade. Não saía com quem amava — sequer disse "eu te amo" para alguém nos últimos anos.

E lá estava ela, de branco como quem salva vidas e trás paz. Seu interior era vermelho. Talvez seu sangue. Talvez amor... Talvez

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Medo.

Viera um sentimento de nostalgia quando viu a boneca. Um Emília na vitrine de uma loja de antiguidades na esquina da Rua da Decisão com a Rua da Monotonia.

Ela tinha nome, embora não gostasse.

Tinha medos, embora os evitasse.

Tinha sonhos, embora os esquecesse.

E naquela esquina, ela lembrou da dança. Encarou a boneca como se fosse um tesouro que não lhe pertencia, assim como alguns devaneios que estavam de passagem por sua mente.

Era uma reles humana. Carregava um estetoscópio na bolsa enquanto preferiria carregar um par de sapatilhas de ballet no pé.

Gostaria de ser quem um dia foi. Porém, era quem inevitavelmente deveria ser. Carregava o peso do mundo nos ombros e alguma centelha de esperança no coração.

Pensou em tudo. Sair do emprego. Tomar um porre. Fugir. Poderia? Claro. Deveria? Jamais. Mamãe ficaria chateada, papai não pagou a faculdade pra eu largar o emprego.

Gostaria de ser feliz.

Quase comprou a boneca, tinha o dinheiro e espaço na bolsa. Todavia, três badaladas ecoaram o sino da capelinha que existia na Rua da Decisão. Hora do plantão.

Correu pela Rua da Melancolia. Estava atrasada. Era condenada a salvar vidas

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E esquecer que também tinha uma.

EtceteraOnde histórias criam vida. Descubra agora