Boreal

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Explode em harmonia a aurora boreal! Porém, isso nada tem a ver com a história que vou contar, é distante até, mas é um poético começar. Digo que poesia inicia tudo, e como o não poético predomina nessa narrativa, acostume-se, das rachaduras, poesias verá brotar!

Longe bem longe da tal aurora, despertava uma menina de não muito o que ser. Era ela, e apenas isso. O que mais haveria de ser? Era crua, cálida e com um coração doente que mal cabia no peito. Amava tanta gente, porém, doía a cada dia, esse miocárdio com um defeito.

Mais que o amor, existia um tal tremor. Temor. Amargor. Existia algo que não sabia, e doía sem receio.

Depois de não muito tempo, leu a respeito, e descobriu que era tarde tratar aquele músculo que pulsava melancolia.

Ela tinha nome, mas não tinha verbo. Tinha fome, e não era de alimento. Tinha medo, e não era da morte.

Tinha tantas coisas que mal sei por onde começar. Começo da morte? Ter início por onde vai acabar? Começo do início? Iniciar num diagnóstico adoecido?

Começo do meio. Onde estaria a exata metade de um livro que escreveria com a história da moça. Onde seria exatamente a página 150, — afinal, trezentas páginas é o suficiente para uma vida, certo? — no início da primeira linha, que seria a continuação de um parágrafo na folha anterior, logo depois de uma vírgula.

... tinha muitos afazeres, embora não soubesse, de fato, fazer nenhum.

Revirava as prateleiras do escritório que ficava na terceira porta logo depois das escadas, as quais ela sempre evitava o sétimo degrau por causa do rangido assustador.

Não sabia o que procurava. Poderia ser o significado de alguma palavra que estava presente no exame que recebera pouco antes, mas não era.

Era algo mais sutil e complexo, que nem a mente ansiosa da garota poderia elaborar antecipadamente, agora já saí da página 150, e estou em novamente em meus pensamentos aleatórios e vos digo por um spoiler cruel, que o que buscava era o significado de uma palavra que jamais soube — durante sua curta estadia na terra — a essência desse verbo mal encarado. O verbo era viver.

Ela sobrevivia aos dias. Ignorava as dores, sentia os amores, e fingia que essas palavras não rimavam para tentar forjar uma vida adequada de ser vivida, embora jamais tenha sido. Não citarei nomes, vai que ela existe, e pode até estar lendo isso, e ainda não sabe de seu diagnóstico...

Mesmo após saber da morte certa, teve seus surtos de leve, mas aceitou. Pensou em deixar de amar os amores e amigos que cabiam no compacto universo de seu coração adoecido.

Acordava cedo. Lavava o rosto. Engolia quatro comprimidos e tomava café preto. Era assim. Os que amavam pareciam não lhe amar de volta.

Escondeu os exames, por algumas vezes fingia que jamais existiram, e que suas dores eram de emoções há muito esquecidas e que foram tão impactantes que o coração adorava relembrar o momento.

Mas não era dor boa, de alegria, de amor. Era dor forte, pesada, como se uma mão invisível envolvesse seu miocárdio e o pressionasse contra a caixa torácica. Mas fingia não ser isso, era dor boa, por via das dúvidas.

Talvez eu pudesse compor uma canção de estilo buarqueano, em que digo que em seu último dia de vida, amou daquela vez como se fosse a última. Mas não. Ela amou sem vontade. Abraçou o gato que adotara três anos antes. Acenou para o porteiro, passou no sinal vermelho e acenou de longe para o namorado que era mais raso que uma colher de chá. Fora trabalhar no escritório. Organizou os livros, tirou a poeira e paquerou a sacada do oitavo andar.

Arrumou os cabelos, sentiu dor e pulou do prédio enquanto seu coração parava.

Morreu de amor.

Aqui concluo com a última linha da página 300.

Era alguém pela metade, que morreu por inteiro.

E concluo mais uma vez. A aurora boreal prossegue em sua dança.

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