A Felicidade Segundo Danny Edwards

Capítulo sem título 10

Trudging slowly over wet sand
Back to the bench where your clothes were stolen
This is the coastal town
That they forgot to close down
Armageddon, come Armageddon!
Come, Armageddon! Come!Everyday is like Sunday
Everyday is silent and grey

(Everyday is like Sunday - Morrissey)

Entramos em uma lancha da Comunidade. Perks queria impressionar, é claro. Quanto mais a embarcação se aproximava da ilha, mais o mar se tornava esverdeado. Meu estômago não estava ajudando. O cheiro da maresia, combustível queimado e a ideia que eu não poderia salvar Daniel e teria que ficar lá para sempre fazia eu querer vomitar.

Chegamos na ilha e fomos recepcionados por um comitê de boas-vindas. Com direito a seguranças armados e mulheres com coroas de flores, vestindo branco. Ao longe, a construção faraônica, que mais lembrava um coliseu romano. Um tapete de flores nos levava até a porta de entrada da comunidade. Não pude deixar de notar o casarão de Perks na outra direção. Uma casa com uma construção contemporânea. Já o "centro" da comunidade mais parece um campo de concentração. Se as pessoas são livres para entrar e sair, como eles explicam tanto arame farpado. Respirei fundo mais uma vez. Era isso. Ou tudo daria muito certo ou eu seria mais uma refém. 

Ao entrar dentro do estádio da comunidade, ajudantes arrumavam o palco e as cadeiras onde os membros da seita iriam sentar. Ao fundo, duas cabanas de madeira com algumas pessoas presas na estrutura. Uma delas era Danny. Tive que controlar meu impulso de correr até ele. Seu rosto estava terrivelmente machucado. Como se tivesse apanhado muito. Não consegui disfarçar minha expressão. Heide colocou a mão em meu ombro e disse:

  — Não se preocupe com eles. Eles vão ser purificados por Perks. O fogo vai curar os pecados deles. E eles vão poder ser felizes.

—  E qual a razão que eles não podem ser felizes junto com vocês, agora? —  questionei.

—  Perguntas não são muito bem-vindas aqui. Para sermos felizes devemos só seguir Perks, seus ensinamentos. A dúvida é uma artimanha do inimigo para nos distanciar de nossos propósitos. Mas já que você é nova por aqui, esses jovens estão contrariando a natureza, fazendo perguntas. Alguns foram acusados de cobiçar pessoas do mesmo sexo. Por isso precisam ser purificadas. Pois não entendem que o homem deve gostar de uma mulher. Outra coisa além disso está errado. 

Suspirei profundamente. Heide me chamou para que eu pudesse colocar a roupa da celebração. A cerimônia iria acontecer em uma hora. Ainda olhei para trás e Daniel me olhava fixamente. 

Depois de arrumadas, esperamos em silêncio para sermos chamadas para a cerimônia. Escondi rapidamente a seringa na coroa de flores que eu usava. Comecei a andar o mais devagar possível para evitar que a mesma caísse da minha cabeça.  Heide me questionou se eu estava nervosa por estar andando de forma robótica. Fiz sinal com a cabeça que sim. 

Enquanto caminhávamos em direção ao campo de futebol, os auto-falantes repetiam discursos com palavras de ordem e músicas que mais lembravam as grandes paradas nazistas. No telão, fotos de gente sorrindo, correndo pela praia, mescladas com fotos de Perks. A felicidade, porém, só existia na tela. As pessoas tinham uma aparência de cansadas, mas são extremamente fanáticas. Fomos para os nossos lugares. De lá, podia ver Danny. Tentei não chamar tanto a atenção de Heide, a qual estava do meu lado. Logo, um dos organizadores subiram no palco para iniciar o cerimonial. Todos levantaram e começaram a cantar o hino da comunidade, o qual mesclava a história de Perks com Jesus Cristo. 

Perks falou por duas horas. Anunciou que dessa vez não iria para o meio do povo, pois teria recebido uma revelação de que seu lugar era no palco e de lá poderia abençoar a todos. Eu olhei rapidamente para a cabana de madeira de Danny. Ele estava com uma expressão de total horror. Naquele instante, Perks começou a chamar as pessoas que estavam há pouco tempo na comunidade para o palco. Era a minha oportunidade. Mesmo ele estando no meio de tantos seguranças. Caso eu tentasse alguma coisa, provavelmente seria morta e Danny também. O plano tinha dado errado. Somente nos filmes pessoas comuns podem salvar o dia. 

Chegando ao palco, Perks começou a se aproximar e perguntar nossos nomes. Quando chegou  na minha vez, só consegui balbuciar meu nome falso. O falso profeta, olhando nos meus olhos, disse:

  — Você tem certeza que esse é o seu nome? 

Eu fiquei perplexa. Um fio de suor começou a brotar nas minhas costas. Será que ele descobrira toda a verdade.

— Sim, esse é o meu nome.

— Não, minha querida. Agora você receberá um novo nome — , respondeu ele.

Um certo alívio tomou conta do meu coração. 

— Porém você terá que fazer algo pra receber seu novo nome.

— O que eu tenho que fazer? — perguntei

—  Você vai acender o fogo da purificação. Se você tiver coragem de colocar fogo nos infíeis, a fim de purificar suas almas, você mostrará que pode ser uma de nós.

Eu apenas olhei para Danny com desespero. Perks se aproximou do meu ouvido e disse:

— Eu sei tudo sobre você, Enid.

Sim, eu havia sido descoberta. Mas como. Samira estaria mancomunada com eles?  

Naquele instante o mundo parou de rodar. Era como se eu tivesse um grande vazio na minha cabeça. Nada parecia real. Tudo rodava. Logo um ajudante de Perks me empurrou para minhas mãos uma tocha com fogo e mandou eu caminhar em direção da cabana. Fui descendo os degraus do palco e caminhando em direção da cabana. Eu transpirava. Eu estava indo matar meu melhor amigo. Eu não podia fazer isso. Parei por alguns segundos e alcancei a seringa que estava colocada em minha coroa de flores. O ajudante que vinha logo atrás de mim correu para agarrar a minha mão. Num impulso, larguei a tocha no chão e corri para o lado da cabana. Um segurança me parou e só ouvi o som dos microfones, onde Perks gritava: pare a infiel. No telão, só consegui ver de relance a marca vermelha de um laser vermelho que mirava na cabeça de Perks. Enquanto os seguranças me seguravam pelos braços, o estádio ouviu o tiro que explodiu a cabeça do profeta, ali, no meio de todos, ao vivo. Depois disso, só ouvimos o barulho das metralhadoras, gente correndo, caindo no chão. Depois disso veio a pancada na minha cabeça e tudo ficou escuro.

Acordei com Danny batendo no meu rosto. Por um segundo, achei que tinha morrido, assim como o meu amigo. 

  — Mataram Perks e os seguranças,—  disse ele.

Acordei na beira da praia. Haviam vários homens armados nas redondezas. Samira veio falar comigo.

— Nós conseguimos. Minha família está salva, Danny está salvo.

— Como você fez isso, Samira?

— Meus amigos do exército vieram me ajudar. A fama do Perks rodou o mundo. E contamos com a ajuda de mercenários de Bornéu. Perks devia muito dinheiro para eles. 

— Danny, você está bem? —  questionei.

— Na medida do possível. Achei que eles tinham te matado. Mas talvez tenham só colocado as coisas no lugar ai dentro da sua cabeça.

Sim, mesmo numa situação como aquela, ele não perdia o sarcasmo. 

— Vamos para casa, Enid. Há um logo caminho para casa. E preciso lhe dizer. Eu descobri o que é a felicidade.

— Como assim? Depois de tudo o que aconteceu com você, ainda tem coragem de falar sobre isso?  

— Sabe o que é felicidade?  — perguntou ele

  — Ok, Daniel, a felicidade não existe. Você já me convenceu disso.

— Enid, a felicidade existe.

— Deixa de ser bobo.

— A felicidade é o nome daquele álbum da banda Hurts. 

Olhei para Danny e ele tinha um sorriso de canto de boca. Samira chacoalhava a cabeça.

— Isso Perks nunca nos ensinou, Danny —  respondeu Samira.

 Ao entrar no barco, a ilha ia se distanciando. Dava pra ver a  fumaça saindo do coliseu. Os auto-falantes continuavam tocando música da comunidade. Mas as pessoas andavam pela praia, se abraçavam. Elas estavam livres. 

  — Na próxima vez vou procurar as coisas no Google — disse Daniel. 

Eu concordei com a cabeça.