AMIGO E INIMIGO

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Após a recusa de Christine a voltar para sua vida normal, voltaram à casa de Swan, onde algumas provisões de viagem foram arranjadas em sua mochila. Ele também deu a Christine uma mochila, onde pudesse carregar algumas poucas coisas para o dia de viagem que teriam até o palácio do rei. O caminho era curto, apenas uma hora de viagem através da mata Florae, ou do que sobrara dela após o incêndio produzido por Allanus.
    Aquela floresta, ou quando ainda podia ser chamada de floresta, era cheia de flores, e diz-se em Lagoonya que ela tinha os mais diversos tipos de flores, mas que foram desaparecendo conforme a alegria do mundo também o fora, pois como foi dito anteriormente, toda a vida de Lagoonya dependia da energia vital liberada pelo Grande Cristal submerso e fixado no fundo do lago Alfa, que ficava exatamente no centro do mundo.
    Aquela floresta, que agora se tornara uma mata, ou assim passou a ser chamada, seria o próximo passo da jornada, e agora teriam que adentrar a um imenso emaranhado de folhas e troncos queimados e sem vida. Mas se isso era necessário, então decidiram por enfrentar a dor que seus corações teriam ao ver a vida escassa naquela região.
    - Então lá vamos nós. A noite está avançando, e teremos que ter cuidado com os seres que nos vigiam a noite. Depois do terror que Glorienn causou no coração do inimigo, não imagino que haja qualquer ameaça na mata durante a noite, mas temos que ter cuidado – disse Swan. Na verdade, seu coração temia algo, mas tinha total disposição para defender Christine de qualquer que fosse o perigo.

    Por volta da quarta hora após o por do sol, estava eles nas bordas da mata, escura e sem vida. Um súbito tremor de medo invadiu o corpo de Swan, mas Christine nada sentiu, pois a chama da coragem ainda queimava em seu coração. O vento soprava forte, e as árvores farfalhavam, criando um clima de solidão e terror, como que tentando intimidar os dois intrusos.
    Christine, que até então não havia sentido nada como medo ou espanto, sentiu que não estavam sozinhos, e que uma ameaça estava no ar, prestes a revelar-se naquela noite escura. Swan sentiu a mesma coisa, e apesar disso, nenhum dos dois disse ao outro sobre tal sensação. No entanto, os dois se juntaram mais, e não ousaram sair de perto um do outro de nenhuma forma.
    Quando a ameaça deixara de acometer seus corações, pensaram em começar a dizer o que haviam sentido, mas foram interrompidos ao verem, por entre os troncos de um emaranhado de árvores, olhos vermelhos e amedrontadores. Os olhos sanguinários olhavam fixamente para eles, mas sequer se mexiam: parecia estar observando algo.
    - Temos que ser cautelosos por essas bandas – alertou Swan – Os Wikkans podem estar em suas redomas, aguardando o próximo plano de seu mestre, como também podem estar por toda parte. São olhos que nunca dormem.
    Christine nada disse, mas não parava de olhar para a direção em que estavam os olhos, porém, pouco mais acima, no meio das folhas. Tinha sentido algo fazia alguns minutos, mas não dissera nada, para que Swan não ficasse mais assustado do que já estava. Mas dessa vez, não segurou, e gritou:
    - Ali! No meio das folhas!
    Quando Swan olhou, um grande pássaro de pelagem negra se revelou diante deles. Não os atacou, mas guinchou de forma ameaçadora, como que tentando expulsar os dois jovens.
    - Venha nos pegar, servo do mal! Venha, traga-nos suas garras. Terei o prazer de entregar seu corpo pessoalmente ao seu mestre, em uma bela bandeja com batatas! – ameaçou Swan – Que nojo, carne de Wikkan. Até mesmo seu sangue deve ser contaminado por todas as impurezas do universo.
    Com isso, a ave se levantou para preparar o ataque, mas do meio das árvores, uma garra saiu e percorreu toda a volta do pescoço do pássaro, e seus guinchos nunca mais foram ouvidos em Lagoonya.
    - O que foi aquilo? – perguntou Christine – Além dos Wikkans, parece que estamos sendo ameaçados por outra espécie de vassalos de Allanus. Ou seria apenas mais um habitante dessa floresta?
    - Não estamos sozinhos, isso é certeza. Mas que de todos os males, sejamos acometidos pelo menor deles, se tivermos que passar por isso.
    Por muito tempo, nada aconteceu, e eles caminharam lentamente mata adentro a procura de uma trilha que os guiasse ao outro lado. Swan conhecia bem o lugar, e poderia muito bem encontrar a trilha mesmo que alguém lhe vendasse os olhos, mas agora que as chamas deformaram a mata, tudo ficou mais difícil, e de alguma forma, mais assombroso.
    Mais uma vez, pararam de súbito ao ouvir um estranho movimento. A sensação de que estavam sendo de alguma forma observados, retornou aos seus corações, e eles procuraram mais uma vez ficar juntos, mesmo que a falta de luz dificultasse a visão. No entanto, nada aconteceu dessa vez: nenhum Wikkan saíra das árvores em ataque, ou sequer se mostraram. O que lhes preocuparam, foi o aparecimento de novos olhos, brilhantes e astutos, que apareciam por entre as moitas e emaranhado de árvores.
    - Realmente, não estamos sozinhos. Mas se estamos sendo observados por esses olhos, não temos por que nos esconder. Sempre passei por aqui, e sempre vou passar, não importa a forma que a mata tenha tomado – disse Swan, ignorando seu medo – O importante é que não estamos sendo atacados, apesar do corvo lá atrás, e aquilo me fez pensar se não estaríamos sendo protegidos por esses olhos, ou os donos deles.
    - Espero apenas que não estejam nos armando uma emboscada lá na frente – disse Christine.
    - Meu coração não diz isso, mas é bom que tomemos cuidado.
    O que tinham em suas mochilas em auxilio àquele momento, eram uma faca e uma pederneira, além de eventuais sacos de dormir. Depois daquele susto, resolveram parar e acender uma fogueira, para que pudessem fazer uma breve refeição. Swan começou então a cortar alguns gravetos das moitas ao redor para dar combustível a fogueira que estava sendo acesa por Christine em uma clareira que encontraram, quando um vento forte e terrível soprou e apagou todas as centelhas. Mais uma vez, a persistente jovem pegou a pederneira para tentar dar vida ao fogo, mas sem sucesso. Era como se o vento soprasse unicamente na direção da fogueira, impedindo-os de seguir em frente.
    - É, acho que teremos que comer no escuro mesmo – reclamou ela.
    - Não importa, me sinto seguro, mesmo nessa escuridão. Sinto novamente que esses olhos não têm qualquer má intensão conosco, e estão de alguma forma nos protegendo de outras ameaças que poderiam nos levar vivos até Allanus.
    A refeição foi breve, mas não porque comeram rápido, e sim porque perderam totalmente a fome com um novo susto que tomaram: em toda sua volta, estavam cinco corvos carniceiros, que os olhavam com ódio e repugnância.
    -Estamos cercados – disse Swan – esperamos que nada possa nos impedir de atravessar a mata. É tudo o que precisamos.
    - Não estou arrependida de ter ficado, pelo contrário, quero fazer tudo o que estiver ao meu alcance para subjugar Allanus e suas forças – respondeu Christine, com coragem nos olhos.
    Ao ouvir essas palavras, as aves ergueram suas garras e armaram seus bicos, prontos para um ataque, quando uma figura escura saiu da mata e atingiu um deles, arrancando-lhe o pescoço. O sangue negro era fétido e malcheiroso, como se a criatura se alimentasse realmente de carne podre. As demais aves ergueram-se em ira, e ficaram sobrevoando a clareira, ameaçando os viajantes, e tudo o que pudesse estar à volta. A ameaça foi finalizada com uma interrupção repentina do voo, e um guincho insuportavelmente agudo do líder das aves. Os companheiros estavam cercados, e cada movimento que executavam era seguido por um olhar de reprovação dos corvos. Finalmente, para a surpresa de Swan e de qualquer ser que pudesse estar ali, a frágil Christine falou:
    - Escutem, aves carniceiras, servos de Allanus – dessa vez, ela mostrava um olhar penetrante e uma altivez que Swan jamais imaginava que ela poderia expressar – Não queremos machucar vocês, mas é o que seremos obrigados a fazer caso não nos deixe passar! Vão, e levem ao seu mestre o recado para nunca mais ameaçar-nos, pois estão para conhecer uma força jamais vista antes.
    Gritos zombeteiros foram emitidos pelas gargantas roucas dos corvos, que ignoraram a ameaça da pequena Christine. Mais uma vez, prepararam-se para atacar, e dessa vez não foram interrompidos pela misteriosa sombra que assassinara dois de seus companheiros. Em um momento rápido, a jovem guerreira se viu segurando o pescoço de uma das aves, que logo se partiu e manchou de sangue negro a grama morta da clareira. Surpresa consigo mesma, Christine perdeu tempo demais e não pôde ver a tempo as três aves que agora atacavam desenfreadamente o jovem Swan. Quando viu, lançou-se sobre as três criaturas, derrubando-as no chão e prendendo-as sob seu corpo e joelhos. Com isso, pegou a faca que levava em sua cintura e decepou-lhes o pescoço.   
    - Você... você é feita de algo mais forte e resistente do que nós todos imaginamos – murmurou Swan, inconformado, e mal podendo falar devido ao ferimento em seu pescoço.
    - Eu não sei o que aconteceu, mas uma chama de coragem queimou em mim – disse ela, ainda sem acreditar no que acabara de fazer. Então, correu para ver como estava o amigo. – Você está todo machucado. Vamos cuidar disso já!
    A prestativa guerreira arrancou um pedaço da cota de pano de carregava sobre a blusa, e enrolou sobre o pescoço do jovem, de onde o sangue escorria sem parar. Então, arrastou-o para a borda da árvore cortada onde tinham feito a refeição, e o deixou encostado ali, enquanto esquentava a água para banhar os ferimentos com ervas aquecidas.
    - Fico pensando no que poderia ser aquela sombra negra que matou os corvos – disse ela – Inimigos devem atacar-se entre si, isso é esperado, mas aquela sombra pareceu estar nos protegendo.
    - Nos protegendo dos corvos para nos atacar mais tarde – disse Swan, ainda com dificuldade na fala – Estamos perdidos, Safira. Não pelos corvos, mas com certeza esta sombra ameaçadora nos preparará uma emboscada a qualquer momento.
    - O que? De forma alguma, que venha a mim, enfrentarei com todo meu sangue e minha coragem.
    - Aquela sombra matou os corvos com apenas uma estacada. Você seria páreo fácil – disse Swan, colocando todo o orgulho de Christine abaixo de seus sapatos.
    - O que você está dizendo? Não fosse por mim, e seu pescoço estaria servindo de piquenique para os corvos!
    -Me desculpe, tá legal? – disse ele, arrependido profundamente de tudo.
    - Tudo bem – disse ela, contrariando em sua mente suas próprias palavras.
    - Me desculpe por ter te trazido aqui, ter lutado pra você continuar. Talvez em seu lar estivesse estudando e vivendo uma vida perfeita para uma jovem linda e serena como você. E agora você está aqui, com o rosto sujo, roupas rasgadas, cuidando de um amigo machucado. No meio da noite, sem lugar confortável para dormir, enfrentando uma floresta que foi consumida por chamas e fumaça negra.
    - Eu fiquei porque quis ficar! Estou enfrentando tudo, porque desejei ficar! Não foi culpa sua, pois embora tenha desejado que eu ficasse, não me obrigou, e até me levou ao local de retorno – disse Christine, confortando-o.
    Quando a água tinha começado a ferver, Christine deu uma olhada em sua volta para encontrar algumas ervas de cura, mas nada encontrou, embora isso não a tivesse surpreendido. Começou então a imaginar como poderia cuidar dos ferimentos de Swan, e começou a chorar. Poucos minutos atrás sentiu-se capaz de fazer qualquer tarefa que lhe fosse imposta, mas dessa vez, as possibilidades estavam esgotadas. Nada havia a ser feito além de esperar que o amigo melhorasse ou morresse. A essas alturas, Swan já estava adormecido, e seu rosto estava pálido, demonstrando fraqueza.

Safira - Quando a Magia e a Morte se UnemOnde histórias criam vida. Descubra agora