O Emissário dos Deuses

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Itzama espreguiçou-se no alto da árvore. Estava sentado há quase três horas em um galho que lhe dava vista para a trilha abaixo.  Ao lado, o chuço comprido de três pontas que usava para pescar. Ele havia trazido um bolo de milho e feijão, mas a ansiedade o fizera devorá-lo na primeira hora de espera. Inquieto, Itzama se ajeitava sem parar sobre o galho, percorrendo o charco com os olhos.

Ele vinha de uma aldeia construída em um morro entre dois riachos chamada Camaxtli e era filho de Acan Imix, o sacerdote que os guiava. Seu pai tivera uma visão na noite anterior, a primeira noite de lua cheia do ciclo lunar: um viajante chegaria à aldeia vindo de muito longe, um Emissário dos Deuses que teria atravessado os pântanos do sul até encontrar uma das trilhas de caça e viajado por ela. Enquannto seu pai contava a visão recebida dos Deuses Itzama viu o rosto do viajante nas chamas da grande fogueira erguida para o ritual. Pediu imediatamente a permissão para encontrar o Emissário dos Deuses e seu pai lhe concedeu a honra. Os moradores de Camaxtli apoiaram a decisão do sacerdote, ansiosos para ver seu filho e herdeiro provar seu valor, cumprindo a vontade dos Deuses.

Por isso Itzama partiu antes mesmo do amanhecer, rumando ao local da visão de seu pai. Ele encontrou uma árvore que se arguia acima das outras, uma kapok coberta de flores brancas com um bando de periquitos comendo as sementes abertas. A kapok era sagrada e por isso seria o local correto para esperar o emissário dos Deuses. Ela crescera sobre um precipício de quinze metros de altura e terminava em um charco de lama e arbustos baixos. Enxergava lá os pássaros empoleirados entre as folhas, esperando um peixe subir à superfície para então saltar sobre ele com o bico aberto. De vez em quando Itzama pescava nessas lagoas de água turva, fazia armadilhas para aves e capturava sapos que entregava para seu pai. Fazia com eles uma poção que dava dons espirituais para quem a consumisse. Um dia Itzama aprenderia como prepará-la, mas seu pai dizia que esse dia ainda estava longe.

Antes mesmo de ter visto o rosto nas labaredas ele já se interessara na visão de seu pai. Camaxtli tinha pouco contato com qualquer pessoa de fora, e há mais de um ano não recebiam ninguém de uma aldeia amiga. Um forasteiro, ainda mais um Emissário dos Deuses, despertou nele uma curiosidade que nunca sentira, um desejo de saber o que havia depois do charco, quem habitava as outras margens do Grande Rio, o que outros povos poderiam lhe ensinar sobre este mundo e outros mundos. Somado à sua curiosidade, seu orgulho o fazia querer provar ser o homem com os olhos mais aguçados como se gabava de ser, o maior conhecedor das trilhas, o mais abençoado pelos Deuses. E, acima de tudo, tinha certeza de que esse homem que estava chegando traria mudanças para Camaxtli, e queria tê-lo como amigo quando isso acontecesse. Por isso esperava, sentado na árvore sobre o precipício.

O caminho até ali era difícil e Itzama era um dos poucos que conhecia essa região, um dos poucos que se arriscava ali. Havia cobras, aranhas e jaguares espreitando, as trilhas eram tortuosas e enganavam quem se distraísse. Mais de um homem se perdeu no caminho e dava para contar nos dedos os que foram encontrados vivos. Ainda mais amedontrador era o cenote a menos de um minuto de caminhada, uma gruta que levava ao Xibalba, o mundo dos mortos e domínio do Deus Ah-Puch. Quando o sol caía Ah-Puch enviava Kinich-Ahau na forma de um jaguar para trazer-lhe mortos para devorar, e Itzama precisava retornar antes de virar caça. Itzama chegara no meio da manhã e aguardou. Quando  teve sede, bebeu de uma lagoa limpa. Quando ficou com fome procurou por ninhos de pássaro para roubar ovos. Quando o sol mudou de posição, sentou-se em outra sombra. O Emissário dos Deuses, contudo, chegou somente a poucos minutos do anoitecer.

O emissário era um velho, o rosto idêntico ao que Itzama vira nas chamas da fogueira. Ele se apoiava em um galho ao caminhar, arrastando uma perna ferida. Sua pele estava arranhada por espinhos, marcada por hematomas, queimada do sol. Estava magro, fraco, talvez doente, mas era um homem como ninguém de Camaxtli jamais havia visto: branco, olhos esmaecidos e a boca e bochechas escondidas por pelos que se misturavam ao cabelo grisalho. Não trazia adornos de cabeça, braceletes ou colares. Tinha panos nas pernas, o peito nu e os pés descalços. Ele não notou Itzama nem quando passou por baixo de seu galho.

O Emissário dos Deuses (Conto) (Completo)Where stories live. Discover now