CAPÍTULO: 12

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O cilindro de oxigênio não se tornou um empecilho tão grande na minha vida, aprendi a conviver com ele e estava até grata por ele estar lá me ajudando a respirar, pois sei que sozinhos meus pulmões não aguentariam um dia sequer.

A maior mudança foi o tapete da sala que foi retirado, já que o carrinho ficava enroscando nele e, claro, ter que conviver com as pessoas me olhando enquanto eu passava e se perguntando por quantos dias mais eu iria viver. Mas eu também me fazia essa pergunta, assim como meus pais também se perguntavam isso todos os dias, durante todas as horas.

Outro problema de estar com meus pulmões piorando era o cansaço regular que eu sentia e os fluidos do meu pulmão, que eu tirava a cada três meses, mas depois diminuiu para apenas dois.

Meu namoro com Demi continuava perfeito, posso afirmar. Ela se provou uma cavalheira ainda maior levando meu carrinho quando passeávamos, carregando-o quando eu subia as escadas e o segurando quando sentávamos na grama do jardim de sua casa para ficarmos um pouco ao ar livre.

Ela me acompanhava nas minhas consultas periódicas e ia me visitar no hospital durante as retiradas dos fluidos do meu pulmão e ficaria lá o tempo inteiro se eu não a expulsasse. Eu também a acompanhava no médico e estávamos todos felizes que seu câncer pareceu aceitar sua derrota depois de ser arrancado com a perna de Demi.

Demi completou seus vinte anos, Shawn iniciou seu terceiro ano na faculdade de educação física, Lauren e Justin começaram a namorar, Austin havia engravidado sua namorada e agora estava de casamento marcado, minha mãe iniciara um curso de culinária online, Peter havia assumido mais um Grupo de Apoio, o homem das terças havia perdido as bolas quando seu câncer voltou, o garotinho com leucemia havia morrido, o tarado do vídeo game estava “CURADO” de seu câncer, minha família e a de Demi passaram o Natal e Ano Novo juntas, em dois mega churrascos com muitas música, animação, presentes e fogos de artifício e, por último, mas não menos importante, eu e Demi completamos 1 ano de namoro.

Eu a amava, mais do que eu imaginei ser possível amar alguém. E eu tenho certeza absoluta que não é apenas um amor de adolescente que eu tenho e ela só está aproveitando isso. Não. Ela é o amor da minha vida. E eu faço questão de lhe mostrar isso todos os dias. Simples palavras, gestos e toques.

O que nos mantinha ligadas que jamais poderíamos envelhecer juntas, cercadas de netos, era meu cilindro de oxigênio, sempre presente aonde quer que eu vá, e sua prótese, que ela já havia se acostumado o suficiente para parar de usar a bengala, mas ainda mancava visivelmente.

Havíamos feito amor depois de sua cirurgia e ela estava tão nervosa, que havia me parado antes de entrarmos em seu quarto e falou: “É logo acima do joelho, uma cicatriz bem feia na horizontal, a marca dos pontos ainda está lá e a pela é meio estranha ao toque.”.

E depois engoliu em seco, olhando para sua prótese, por cima da calça. Eu a assegurei, no entanto, que não havia problema nenhum, que a amava daquele jeito mesmo e então, enquanto tirava meu vestido, ela tirou sua calça, sua prótese e se enfiou embaixo das cobertas, esperando eu me aproximar para terminar de tirar nossas roupas.

Depois, havíamos ficado lado a lado na cama e eu passei minha mão por sua perna, antes de rolar por cima dela e beijá-la. O maior problema naquele dia, com certeza, foram minhas cânulas, que enroscaram no meu vestido, em meus cabelos e em praticamente tudo, até que conseguimos lidar com elas.

Estávamos felizes de novo, nos amando imensamente e vivendo o melhor que podíamos o que poderia ser nosso último dia. Eu ainda achava que era perfeito, bom, quase perfeito, seria melhor sem ter que carregar meu carrinho pra todo lado.

Mas parece que o mundo tem um problema enorme em simplesmente nos deixar ser felizes. Não, melhor, nossos cânceres tem um enorme, gigante, em nos deixar viver felizes.

Eu bem me lembrava daquele dia. O dia onde tudo começou a cair aos pedaços em nossas vidas (quase) perfeitas. Era uma quarta-feira, estava nublado, ventando muito e eu podia sentir o cheiro de chuva se aproximando. Eu estava no meu quarto, lendo um livro debaixo da minha coberta rosa e esperando Demi chegar do médico (não pude lhe acompanhar, já que estava bastante cansada). Eram quase cinco da tarde já e não havia nenhum sinal dela. Eu estava começando a ficar muito ansiosa.

Mas ela só chegou às 18:00h e entrou em meu quarto com passos de tartaruga, como se ela quisesse fugir dali correndo, mas sua prótese não facilitaria o processo. Ela se escorou na minha porta, depois de fechá-la e sentou no chão, pegou seu chapéu na mão e ficou rodando-o devagar.

Lembro-me de ter fechado o livro, mas não ter falado nada, sabendo que ela estava se preparando para contar algo horrível. Ela ficou lá sentada por uma hora, eu sabia porque estava olhando o relógio pendurado logo acima da porta, antes de dar um suspiro alto e falar, finalmente, quase como um sussurro, a voz rouca.

“Eu me acendi como pisca-pisca.” Continuei sem dizer uma palavra sequer. “MINHA OUTRA PERNA.” Ela continuou. “Meu quadril, meu fígado, meus rins, meus pulmões, minha garganta, meu pescoço, meus braços. Minha cabeça parecia aquela maldita estrela da ponta da árvore de Natal.”

E o meu silêncio só foi quebrado quando Demi começou a soluçar. Eu nunca a havia visto chorar, nem mesmo quando recebeu a noticia que teria que amputar sua perna. Ela sempre me pareceu tão incrivelmente forte, mas agora eu sabia, ela não ia quebrar apenas por perder uma perna, ela esperou para quebrar quando soube que ia ter uma batalha muito maior pela frente. O câncer estava por todo seu corpo. Ele havia vencido a batalha contra a conquista de “TERRITÓRIO” e agora a guerra estava chegando ao fim. Demi podia ganhar e ele desapareceria ou ele podia ganhar, então quem desapareceria seria Demi.

Eu nem percebi que havia começado a chorar também. Dessa vez não houveram abraços apertados, nem o conforto no calor uma da outra. Ficamos lá, cada uma em um canto, chorando, desesperadas com o que acontecia.

“EU VOU LUTAR.” Ela disse depois de muito tempo, sua voz bem rouca e as lagrimas ainda escorrendo, apenas mais silenciosas. “Por você. Eu vou lutar. Quero viver para continuar ao seu lado, pois estar com você é a melhor coisa que aconteceu na minha vida e eu não quero perder isso.”

“EU SEI QUE VOCÊ VAI LUTAR.” Eu falei, com a voz entrecortada. “E eu vou estar ao seu lado, lutando com você.”

Demi acenou com a cabeça e recolocou seu chapéu cuidadosamente, mas não saiu de seu lugar. Mais dez minutos se passaram, antes que ela falou de novo. “VOU CORTAR MEU CABELO AMANHÃ.” Comentou.

Eu olhei para ela, um pouco surpresa. “Por que?”

“Vou iniciar esse novo tratamento com quimioterapia. Meu cabelo vai cair mesmo, só vou adiantar. Desse jeito, quando começar a cair, eu vou perder pouca coisa, mas se eu deixar assim vou começar a perder mexas enormes e vai ser bem pior.” Ela explicou.

“MUITO CURTO?” Sussurrei, tentando imaginá-la sem seus cachos que eu tanto adoro.

Ela balançou a cabeça em acordo. “Talvez eu faça um moicano. O que acha?” Brincou.

“Então você pode descolorir as pontas e começar a usar quilos de gel.”

Ela acenou concordando e sorriu um pouco. “Ou posso fazer estilo Ronaldo na copa de 2002.”

“Eu não assistia futebol antes de te conhecer, Demi...”

“Foi tipo estilo Cascão.” Ela riu.

Eu acabei sorrindo.

E no dia seguinte lá estava ela, na minha frente, cabelos curtos. Porém, não foi moicano nem estilo Cascão. Ela havia cortado seu cabelo estilo Shane McCutcheon na segunda temporada de The L Word. Cabelo até a orelha e repicado completamente com a navalha e ainda havia feito californiana nas pontas embaixo, assim como Shane, e seu cabelo estava em todas as direções, uma bagunça completa. E ela estava linda, absolutamente linda daquele jeito.

Eu só queria que a quimioterapia não fizesse seu cabelo cair, pois seria uma grande perda aquele novo visual desaparecer.

 •Demally• √ U͜͡n͜͡r͜͡e͜͡a͜͡c͜͡h͜͡a͜͡b͜͡l͜͡eOnde histórias criam vida. Descubra agora