Era um simples retorno no médico para acompanhar meu câncer, um exame detalhado no pulmão e a constatação que chegara a hora de eu usar o cilindro de oxigênio. Meu câncer estava piorando, junto com meus pulmões já horrendos.
Não que eu tivesse esperança que ele fosse ser curado ou que desapareceria magicamente, sempre tive consciência de que tenho um câncer terminal e que não vou sobreviver a isso. Mas ter a certeza de que ele está avançando e que está me matando mais rapidamente era bem diferente.
Fiquei horas lá aprendendo a usar o cilindro, junto com minha mãe e meu pai, sabendo sobre tudo e qualquer coisa sobre ele, sobre sua função e seu funcionamento. Também aprendi a usar o BiPAP, o aparelho que ajudaria meus pulmões enquanto eu estivesse dormindo.
Voltei para casa exausta, só querendo dormir. Pedi para minha mãe não contar à Demi sobre a nova adição em minha vida, não queria que ela se desesperasse.
Liguei para ela assim que cheguei em casa e disse que fiquei mais tempo que pretendia no médico, que estava cansada e que já iria deitar. Ela não falou nada, apenas disse: “bons sonhos, tente não ter sonhos eróticos comigo.”. Isso animou meu humor um pouco.
No dia seguinte, tive meu primeiro dia de uso do cilindro de oxigênio, ajeitei as cânulas nas minhas orelhas e coloquei-a no nariz. Imediatamente me senti melhor com o oxigênio que me ajudava a respirar. Percebi o quão péssimos meus pulmões estavam. Demorei um pouco para pegar o jeito de me locomover com o carrinho e como lidar com a cânula, mas foi mais fácil do que eu esperava.
Estava prestes a ligar para Demi depois do almoço e contar para ela meu novo estado de saúde quando a campainha tocou. Eu queria correr para meu quarto e esconder o cilindro, para poder explicar antes dela me ver, mas ela entrou na sala antes que eu pudesse reagir, mancando por causa de sua prótese, sorrindo de orelha a orelha, como sempre fazia ao me ver.
Ele sumiu, no entanto. Seu sorriso. Sumiu. Quando ela percebeu no carrinho ao meu lado, as cânulas no meu nariz. Um olhar de pura tristeza e dor cruzou seu rosto e eu cheguei a pensar por alguns segundos que sua perna tinha voltado a doer. Mas ela se aproximou de mim, esticou a mão para meu rosto, eu pensei que ela iria me tocar, mas ela pegou a cânula e mexeu-a um pouco, antes de me olhar e dar um passo para trás.
“NÃO.” Ela sussurrou, sua voz quebrada. “NÃO.” Repetiu. Então uma série de palavrões escapou de seus lábios. Eu nunca havia visto-a xingar nada, nem ninguém, mas lá estava ela, gritando todos os palavrões existentes no mundo, completamente fora de si, revoltada, batendo com sua bengala no chão com força.
Seu ataque durou cinco minutos e, até esse ponto, meus pais já estavam na sala também, observando, assustados, seu desespero. Ela parou de repente, do mesmo jeito que havia começado, e se escorou nas costas do sofá, uma mão na sua coxa, a outra segurando trêmula sua bengala, que ela usava para se apoiar.
Eu esperei alguns segundos, enquanto ela respirava fundo, antes de pegar sua mão e a arrastar até o meu quarto, deixando meus pais preocupados atrás. A escada demorou bem mais do que das outras vezes. Agora Demi usava uma prótese e eu um carrinho carregando um cilindro de oxigênio. Entramos no meu quarto e eu fechei a porta, sentando em minha cama logo depois. Demi ficou em pé, escorada na minha mesa, com os olhos fechados e respirando fundo.
O clima estava meio pesado e os minutos passavam quase se arrastando. Por fim, Demi suspirou e abriu os olhos, encarando a janela fechada do meu quarto. “É tolice minha.” Ela começou, baixinho. “Estamos juntas a quase 9 meses e você não aparentou estar piorando. Mas é claro que você está, você tem um câncer terminal.
Eu só tinha esperanças que você fosse demorar algum tempo, antes de...” Demi se interrompeu, respirou fundo e me olhou. “Acho que eu esperava que o câncer sumisse milagrosamente ou que seu diagnóstico estivesse errado.”
Me levantei e fui até ela, abraçando-a. Demi suspirou e me abraçou também, largando sua bengala em cima da mesa e escondendo seu nariz no meu cabelo. “Eu vou ficar bem.” Falei, beijando seu ombro.
“EU SEI.” Ela beijou minha cabeça. “Você tem as duas pernas.” Brincou.
“Isso mesmo. Posso correr mais do que você.” Sorri um pouco.
Ficamos em silêncio mais um tempo, até que Dulce reclamou que sua perna estava doendo e nós deitamos na minha cama. “Você começou a usá-lo ontem?” Ela perguntou.
“SIM.” Respondi, brincando com os botões de sua camisa, mas sem abri-los. “Não queria te contar ontem porque estava muito cansada e não te contei hoje pelo telefone porque queria contar pessoalmente, estava me preparando para contar quando você apareceu.”
Ela suspirou novamente. “Sinto muito ter deixado isso mais difícil pra você.”
“É, você deixou bem mais complicado mesmo.” Rebati, sorrindo.
Demi beijou minha testa. “Acho que ambas esquecemos o quanto o câncer é mortal nesses meses.”
“E ele nos fez lembrar da pior forma.” Conclui, suspirando. “Mas pelo menos temos uma a outra.”
“Exato. Eu te amo e nada pode nos derrubar sem antes lutarmos.” Ela sorriu. “Porque eu espero morrer com muita dignidade.”
“Ah, é mesmo? E morrer lutando contra um câncer não tem sua dignidade?”
“Claro que tem, mas você não lê sobre isso nos livros de história. Nós estudamos sobre grandes guerreiros que morreram em batalha, morreram lutando contra alguém enquanto faziam algo que mudaria o mundo. Não lemos ninguém com câncer. Porque morrer de câncer parece ser menos digno do que morrer lutando até a morte com algum maluco enquanto os dois sangram e tem pedaços de seus corpos arrancados com espadas ou coisas assim. Mas nós sabemos que não é bem assim.”
“Porque temos câncer.” Falei.
“Porque estamos morrendo de câncer.” Ela me corrigiu. “E estamos lutando para viver apenas um pouco mais do que ele.”
Eu gostaria de saber, naquele dia, que essa luta estava perdida...
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•Demally• √ U͜͡n͜͡r͜͡e͜͡a͜͡c͜͡h͜͡a͜͡b͜͡l͜͡e
Fanfic01 • C̳̳o̳̳m̳̳p̳̳l̳̳e̳̳t̳̳o̳ • ✓ ➪ ᴄʀᴇ́ᴅɪᴛᴏs ᴘᴀʀᴀ ᴄᴀᴘɪsᴛᴀ ➪ CamzLolo S̾I̾N̾O̾P̾S̾E̾ Quando você tem câncer, a primeira coisa que acontece é a pessoa sentir pena de você. E para qualquer pessoa com câncer, é a pior coisa que pode acontecer no mundo...