A garota ajeitou o casaco, enquanto olhava para o branco mesclado ao negro; o vento noturno balançava seus cabelos lisos, pondo-os sobre seus olhos, um azul e outro negro. Com a mochila nas costas, sentia-se outra vez uma menininha, com o coração pulsando firme, num agradável ritmo de ansiedade. Mesmo com as luvas de crochê, seus dedos estavam congelado. A touca na cabeça ajudava a aquecê-la, apesar de parecer inútil.
As árvores, com seus galhos quase sem folhas e cobertas pela neve, possuíam um aspecto medonho àquela hora da noite; e os latidos distantes dos cães eram capazes de lhe causar arrepios. Os postes iluminavam bem o parque, que se mostrava quase deserto, exceto por causa da figura jovem e feminina que passava.
Durante as inúmeras vezes que passeara por ali, Anamélia se atentou a gravar em sua mente os detalhes do lugar, de bancos a chafariz, de árvores a pontos que pudessem orientar a sua ida para o bosque.
Sim, o bosque.
Lendas contavam que o modesto Bosque da Melancolia, como era popularmente conhecido, era um lugar em que moravam algumas criaturas magicas, trazidas há muito tempo por um homem misterioso. Antes de a cidade ser construída, havia uma vila que cultuava a natureza, formada por pessoas que tinham contato direto com os seres místicos. A magia emanava de cada coisa e pessoa, sem o menor pudor. E todos eram muito felizes assim.
Num determinado ponto, diziam os relatos, existia um portal que possibilitava a passagem para outro mundo, uma terra pouco conhecida pelos humanos. E era para lá que a garota queria ir.
Anamélia apressou o passo. Não por medo, mas apenas para não perder tanto tempo. Pouco acostumada com tanta neve ou com o vento gélido, andar pelo terreno alvo era uma tarefa difícil, entretanto ela se mostrou empenhada, ainda que tivesse tropeçado uma ou duas vezes.
A fronteira entre a área urbanizada e o bosque parecia o limiar entre o mundano e o sagrado, a barreira que dividia dois mundos distintos. E assim que seu pé atravessou a linha invisível foi como adentrar um jardim florido.
Sem neve ou gelo, somente o colorido da primavera, os frutos do outono e a alegria do verão. As árvores regozijavam a suprema excitação da vida, os pássaros cantavam harmoniosamente e as borboletas, de tantas cores e formas que era impossível nomeá-las, bailavam sobre flores ainda mais coloridas. Coelhos e esquilos se movimentavam de um lado a outro, saltitantes e travessos. O mais estranho era que parecia uma manhã, e não mais a noite de segundos atrás.
A garota se animou, imaginando ter já atravessado o portal, contudo não viu elfos, fadas, gnomos, duendes, sátiros, ninfas ou unicórnios, nada que revelasse aquela terra mágica que mencionavam as histórias e lendas. Com exceção da claridade diurna e das cores espalhadas como aquarela, nada mais havia de extraordinário.
Um pouco decepcionada, Anamélia se sentou sobre uma pedra, quase chorando.
Pobre menina! Desanimara rápido demais, frustrada com o resultado de uma espera de mais de onze anos!
— Acaso seria pedir muito que saísse de cima de mim? — solicitou uma voz rouca, tão baixa que parecia um sussurro vindo debaixo da pedra a qual a moça estava sentada.
Erguendo-se com um sobressalto, garota procurou em volta pelo dono da voz. Nenhum animal por perto; apenas ela e a pedra.
— Quem disse isso?
— Eu, oras!
Sim, quem falava era exatamente a pedra!
— Desculpe-me, eu acho — foi o que Anamélia pôde dizer naquele momento.
— Nem me importo tanto como antes, mas é que hoje é meu aniversário. E não gostaria que servisse de assento numa data tão importante, entende?
— E desde quando pedras fazem aniversário?
— E quem disse que sou uma pedra, minha jovem?
A garota ergueu a sobrancelha esquerda, bastante confusa.
— Antes de me tornar este objeto imóvel, eu era um destacado erudito dos reis mais aclamados de todos os reinos — prosseguiu a criatura em forma de pedra, com aquele tom de voz rouco e sofrido. — Dediquei meus anos de juventude nos estudos mais profundos, na esperança de compreender não apenas o mundo como também o universo. Com isso, tornei-me tão sábio quanto o mais elevado monge das montanhas. Foi um bom tempo, acredite. Mas minha sapiência excessiva causou a inveja de uma bruxa, que me amaldiçoou a não mais me mover ou falar, tornando-me uma pedra. E cá estou desde então.
— Mas, se você não pode falar, como estou ouvindo a sua voz? — apontou a jovem, tão observadora quanto capaz de aceitar o estranho fato de que uma grande pedra falava.
— Você, na verdade, ouve meus pensamentos mais rasos. E isso a faz especial, pois apenas a escolhida para me libertar ouviria o que penso na superfície.
E assim Anamélia se tornou a escolhida.