O cálice quase cheio

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Ao olhar pela enésima vez para a coroa de espinhos, foi meio inevitável não pensar naquela que a grotesca criatura do pântano usava. Deveria ser deveras ruim ostentar algo que feria a cabeça constantemente; e se usar algo como aquilo tornava alguém, melhor que não fosse mais do que um reles servo ou escravo. A dor eterna era algo que não valia o preço de ser soberano.

— Pronta para a sexta tarefa? — inquiriu a pedra, sentindo-se perto do que tanto ansiava.

— Sim — respondeu a jovem, ainda olhando a coroa.

— Creio que esta missão exigirá de você uma maior dedicação, pois se desenrolará em duas partes. Realmente eu queria não precisar envolvê-la nisso, contudo cá estamos próximos do desfecho. A primeira parte dependerá muito de sua capacidade de agradar a uma criatura que habita este bosque. É o senhor da vida vegetal e de alguns animais. O leshii é um ancião poderoso e sagaz, que se diz soberano sobre tudo o que vive em seu reino; ele pode tanto ajudar quanto enganar, dependendo do humor em que está. Eis o que quero que faça: arranque alguns galhos de vidoeiro-branco e desenhe um círculo, tomando o extremo cuidado de deixar as pontas das hastes direcionadas para o interior do símbolo; ao terminar, entre nele e olhe para o leste. Lembre-se, portanto, de fazer o círculo em volta de uma árvore, com a qual seu pé deve tocar o caule logo depois de desenhar a forma mágica. Feito isso, diga estas palavras: “Tio leshii, suba! Não venha como lobo ou fogo, e sim em forma humana!”. Faça isso, minha cara, e ele virá!

— E depois?

— Peça para ele uma varinha de condão feita de uma árvore que nasce adjacente ao rio cujas águas regam o jardim da Morte. Tenha certeza de que será atendida em seu pedido, pois você o convocou para servi-la por algumas horas apenas.

— Para que a varinha?

— Para a segunda parte da tarefa, é claro. Após se despedir do leshii, vá para aquele pântano em que esteve mais cedo! Não se esqueça de que a varinha somente concederá três pedidos, portanto você deverá usá-la com sabedoria ou não conseguirá o que nos falta. Se for observadora, notará um castelo construído com ossos e diamantes. Seu primeiro pedido é que ele desapareça. Esconda-se e aguarde a senhora do lugar aparecer. Seu segundo pedido é que ela morra. Quando isso ocorrer, vasculhe suas vestes e pegue um cálice feito de um metal branco. E seu terceiro pedido é que regresse para mim o mais rápido possível. Entendeu?

Anamélia assentiu, apesar do segundo pedido a incomodar.

O bosque era maior do que aparentava. O vidoeiro-branco foi encontrado sem muita dificuldade. Era uma árvore não muito alta, o que não atrapalhou a retirada de dois galhos. Andando mais um pouco, encontrou um espaço no qual apenas uma macieira estava num raio de dez metros, formando um círculo meio torto; seguindo as instruções da pedra, ela fez o desenho circular, atentando-se a manter as pontas que riscavam o solo úmido direcionadas para o interior. Ao findar o serviço, entrou na figura, fitando os frutos maduros da macieira. Respirou fundo, ciente de que agora vinha o processo mais tenso.

— Tio leshii, suba! — gritou com plenos pulmões. — Não venha como lobo ou fogo, e sim na forma humana!

Nada aconteceu.

— Tio leshii, suba! — repetiu, aumentando ao máximo o tom da voz. — Não venha como lobo ou fogo, e sim na forma humana!

De repente toda a natureza se calou. Pássaros pararam de cantar. O vento não soprou. O farfalhar das folhas nas copas das árvores cessaram. Os roedores deixaram de correr pelos galhos e pela folhagem seca. Tudo mergulhou num silêncio assustador. As criaturas se curvavam para o seu senhor.

AnaméliaOnde histórias criam vida. Descubra agora