A pedra comemorou a realização do sexto trabalho. Pularia de alegria, caso possuísse pernas. Somente o último item a separava de seu objetivo; e Anamélia lhe daria, afinal estava determinada a realizar seus sonhos.
A garota segurou a varinha de condão com força. Estava inquieta desde o retorno, pensando em tudo o que acontecera naquela noite longa de inverno. Visitara um cemitério, onde cuidara dos cabelos de um ghoul macho e mamara no seio murcho de uma fêmea; convenceu um gnomo a buscar cogumelos cultivados no jardim da Morte; viu uma rainha ogra matar um servo pouco antes de recolher o escarro lançado ao chão; destruiu o jardim botânico para conseguir as cinzas de uma fênix; invadiu a igreja para se apossar da coroa de uma figura religiosa; e testemunhou a rainha dos ogros pisotear uma bruxa pouco antes de ser explodida.
— Qual a sétima tarefa? — perguntou, sabendo que não tinha mais como voltar.
— Ponha as lágrimas da donzela, os cogumelos mortíferos, a saliva da rainha dos ogros, as cinzas da fênix e o seu sangue no cálice, minha querida! — pediu a pedra, num tom calmo e sem rodeios.
— Meu sangue?!
— Sim, seu sangue.
— Mas, por quê?
— Preciso do sangue de um sonhador, e você é a pessoa mais sonhadora do mundo.
— Mas... é...
O leshii disse que sua alma pertenceria a ele, que a passaria para a Morte, como uma oferta pela varinha.
—... e seu eu morrer? — receou a jovem órfã.
Morrer significaria o fim de seus sonhos.
— Você não vai — respondeu o erudito. — É só um pouco que precisarei. O suficiente para que eu me transforme em um homem outra vez e possa levá-la comigo para meu mundo.
Anamélia hesitou.
— Apenas um corte no pulso — continuou a pedra, caprichando na lábia —, um corte feito com a pedra filosofal. Um pouco de sangue dentro do cálice, junto com as lágrimas, a saliva, os cogumelos e as cinzas. Faça isso e eu me libertarei para cumprir minha parte do acordo!
— Promete que cumprirá?
— Dou a minha palavra de pedra.
— Se for mentira sua, quero que volte a ser pedra novamente e que nunca ache outra escolhida para ajudá-lo! — desejou a moça, apertando a varinha com tanta força que ela se partiu.
Cada item foi posto no cálice com cuidado; apesar de parecer pequeno, tinha espaço o bastante para que tudo coubesse; e, por mais que coisas fossem postas, mais poderiam ser depositadas sem que o conteúdo chegasse sequer ao meio. Ao terminar, pegou a coroa de espinhos e rasgou o pulso esquerdo, que sangrou um líquido vermelho vivo.
— Encha o cálice! — pediu o guia petrificado. — Encha-o com seu sangue ou não será o suficiente!
Enquanto o rubro liquefeito escorria e caía para o interior do recipiente, Anamélia já devaneava com os passeios nos campos coloridos, os banhos nos lagos e rios, as danças ao som de flautas, as refeições nos bosques... Tudo seria diferente. Nada de dor, nada de se lembrar dos jogos doentios do zelador. Esqueceria o aborto que sofrera ainda no orfanato, logo após uma das freiras a obrigar beber suco de limão misturado ao sumo de cogumelos venenosos; por três dias inteiros vomitou e sangrou, sofreu num quarto isolado, e ninguém se dispôs a chamar um médico; encontrou forças nas fotografias dos pais e naquele homem crucificado, embora fosse uma figura imóvel. Esqueceria o maldito monstro caindo da janela, ao perder o equilíbrio quando foi empurrado após tentar passar aquela mão asquerosa em sua virilha outra vez; a imagem de seu crânio estourado seria nada além de um vulto incógnito. Esqueceria a casa dos pais adotivos, que por muito pouco não foi completamente incinerada depois de deixar o registro de gás aberto e uma vela acesa.
Para seguir em frente, às vezes, é bom deixar algo para trás.
O sangue escorria lentamente. E o cálice nem estava pela metade ainda.
— Só mais um pouco! — incentivava a pedra.
A garota se sentou ao lado do erudito, sentindo-se sonolenta. Encostou o recipiente que nunca se enchia perto de suas pernas, observando seu conteúdo heterogêneo. O braço estava dormente; logo foi todo o corpo que paralisou. Apenas enxergava, ouvia e balbuciava alguma coisa. Incapaz de se mover. E com muito frio.
— Adeus — foi a última coisa entendível que pronunciou.
E seus olhos de duas cores se fecharam para aquele mundo que tanto a fizera sofrer.