Depositando o punhado de cinzas da fênix sobre uma folha larga, ao lado das lágrimas da donzela, dos cogumelos venenosos e da saliva da rainha dos ogros, Anamélia esperou por alguma bronca vinda da pedra. Ansiava por aquilo, afinal merecia; fez algo muito errado, portanto uma reclamação seria aconselhável. Contudo, a pedra era insensível demais para isso, para gastar seu tempo precioso com bobagens. Não, jamais teria de aplicar lições morais.
— Vejamos — falou o sábio petrificado, indiferente a tudo e a todos, em seu delírio megalomaníaco —, quatro tarefas cumpridas com sucesso. Restam apenas três para tudo se acabar. Precisamos de uma pedra filosofal. É, preciso sim.
— Pedra filosofal?!
— Nunca ouviu falar?
— Já, já ouvi falar.
— Então, por que o espanto?
— Pensei que...
Calou-se a tempo. “Pensei que fosse uma lenda” soaria como uma frase ridícula após encontrar uma pedra falante, dois ghouls num cemitério, um gnomo num limoeiro, ogros num pântano e uma fênix num jardim. Fábulas se tornaram reais desde que toda aquela série de aventuras começou.
— Continuando, a pedra filosofal é essencial para a transmutação das coisas, para a alteração das formas, para a passagem. É um objeto poderoso e que faz mais do que transformar metais em ouro. Na verdade, transmutar algo em ouro é apenas uma utilização estúpida do enorme poder da pedra. Sábios e estudiosos de nível elevado compreendem as grandes possibilidades.
— E onde eu a encontro? — perguntou a garota, demonstrando impaciência.
— Perto daqui, ao lado do parque e do bosque, num recanto para as almas cansadas do mundo. Nos domingos, pela manhã e pela noite, um clérigo celebra cerimônias solenes, prometendo aquilo que ele mesmo duvida que consiga. Nestes anos em que me encontro aqui, minha cara sonhadora, observei as pessoas que lá adentram semanalmente. Metade não possui sequer fé naquilo que busca.
— A pedra filosofal está na igreja? É isso?
— Sim, está.
A jovem suspirou. Teria de se apoderar de um objeto que estava num templo sagrado. Um furto. Anteriormente, nas primeiras tarefas, tudo o que obtivera lhe parecera justo pegar. Precisou agradar ao casal de criaturas profanadoras de túmulos para conseguir as lágrimas da morta por amor; o gnomo foi gentil em lhe trazer alguns cogumelos do jardim da Morte; a saliva da suposta rainha dos ogros foi recolhida numa poça nojenta escarrada no chão; e as cinzas...
— Tem certeza de que só há lá? — perguntou ela, pela primeira vez naquela longa noite hesitando tanto perante uma tarefa. — Não há em nenhum outro lugar?
— Não.
Anamélia desviou o olhar, mordendo o lábio inferior.
— Acaso quer desistir de nosso sonho? — questionou a pedra, num tom de melancolia.
— Bem, eu... não sei...
— Se quiser, eu entendo perfeitamente. Chegamos perto. Mas jamais quero que você faça algo que vá de encontro ao que acredita. Voltemos ao normal. Você volta para casa. E eu continuo como uma pedra. Esqueçamos o mundo maravilhoso que poderíamos ir.
— Não! — gritou a garota, vislumbrando tudo se perder com a recusa da quinta missão. — Eu irei!
Claro que a pedra sorriu. Ou teria feito isso, se tivesse uma boca. E dentes.
A igreja sempre foi um local estranho. Talvez por possuir um aspecto sombrio, com aquela arquitetura cheia de triângulos, colunas, retângulos e vitrais coloridos, mas que nada de belo tinham. Ou talvez fossem bonitos, se olhados sob uma perspectiva diferente, mais estética. Para a jovem, entretanto, a emoção causada era de temor e submissão perante aqueles santos austeros, aquelas representações da vida de apóstolos e profetas. Quando o padre dava seus longos e complicados sermões, todos se calavam e fingiam entender aquelas palavras difíceis de pronunciar. Ele era um homem sábio; ou parecia ser; sobretudo após falar tantas coisas de profundidade aparente. No entanto, o que deixava a menina inquieta era seu jeito de se expressar e olhar as pessoas, como se vasculhasse as almas dos outros.
Os portões de carvalho eram trancados à noite, afinal ninguém queria delinquentes furtando nada ali. Uma vez, quando ainda ficavam abertos sempre, alguns drogados se apossaram de alguns candelabros de ouro e alguns objetos de prata. Depois do ocorrido, todos decidiram que o melhor era que evitassem deixá-los abertos a partir de certo horário noturno. Mas, por algum motivo inexplicável e disfarçado, encontravam-se destrancados naquela madrugada, como descobriu Anamélia ao empurrar um deles, já esperando um resultado oposto àquele.
Na verdade, a vontade da garota era que não precisasse da pedra filosofal, evitando entrar naquele recinto sagrado. Por isso se espantou quando a madeira rangeu ruidosamente, revelando um pouco do interior, as centenas de bancos de madeira enfileirados um após outro, por uma centena de metros, até o púlpito. Dois corredores separavam três grupos de bancos consecutivos. Nas paredes, entre os vitrais, os candelabros de ouro e prata, com aquelas velas grossas queimando em chamas fracas; provocavam um medonho jogo de luzes e sombras que assumiam vida sob aquele teto de ângulos esquisitos.
Seus passos ecoavam num ritmo suave e sincronizado, sendo o único som presente ali. Segundo seu mentor, o artefato estaria bem visível, pois olhos comuns nunca enxergariam a perfeição diante de si. Ela reconheceria o que procurava sem problemas, afinal já estava acostumada com a natureza mágica das coisas; não haveria dificuldades em identificar um item tão essencial.
A imagem esculpida em mármore, num tamanho próximo ao real de um homem, parecia encará-la, cobrando o pagamento de seus pecados, como pregava o padre. Embora fosse somente uma figura representativa e estivesse presa à uma cruz de madeira envernizada, era como alguém vivo e onisciente, com o sangue escorrendo nos ferimentos. E aquilo diminuía a existência de Anamélia a um mero grão de areia numa praia, eventualmente com pés descalços sobre sua insignificância.
O orfanato em que crescera era mantido por doações; em grande parte os donativos vinham da igreja, que oferecia conforto espiritual e financeiro. Todos se questionavam como o padre, um bom orador e samaritano, obtinha aquelas peças de ouro maciço que eram entregues mensalmente aos cuidados da supervisora. Agora, conhecendo a presença da pedra filosofal, fazia sentido a origem do milagre. Qualquer coisa inanimada poderia receber o toque de ouro do objeto. E assim seguia a vida.
Furto. Era isso que ela foi cometer lá.
Seus olhos heterocromáticos vasculharam todos os cantos, numa tentativa apressada para achar a razão de sua invasão. Nada denunciava a existência do item. Tudo estava tão normal, tão comum, tão monotonamente simples que chegava a desanimar. E eis que Anamélia se sentou num dos degraus da escada curta que conduzia um fiel até o palco, cobrindo o rosto. Um choro silencioso.
Queria muito fugir. Havia monstros naquele mundo frio e sem vida. E muitos desses abusaram de sua pureza, de seu corpo, de sua mente, de sua alma. Arrancaram cada camada que formava quem era. Despiram-na das roupas e da pele, expondo sua fragilidade e destruindo tudo o que era bom, contaminando-a com a dor e a agonia. Monstros com aparência humana, disfarçados de tantas pessoas, com métodos variados. Ou seriam todos demônios, afinal? Talvez o padre estivesse certo ao afirmar que criaturas do inferno caminhavam entre a humanidade, semeando a desgraça, assumindo a forma humana. Primeiro devoravam os corpos, apodrecendo-os, para assim chegaram às almas.
A jovem chorou. Estava cansada demais de viver. Não havia alegrias naquele lugar. E apenas uma pedra a separava da tarefa seguinte, do que mais desejava na vida: escapar.
Milagres acontecem em diversas ocasiões. Não dependem de fé, como se pensa por aí, embora acreditar seja de grande utilidade. Estão além. Não se sabe de onde vêm ou para onde vão. Somente aparecem. Muitas vezes são ignorados. É a natureza das coisas miraculosas. E foi um milagre que despertou a atenção da pobre moça. Um sussurro tristonho a chamou pelo nome, levando seu olhar lacrimejado para a estátua crucificada atrás de si. O sangue ainda escorria pelos pulsos, ventre e pés, gotejando no piso alvo da igreja; o filete que fluía pela cabeça, contudo, possuía uma coloração que diferia do rubro vivo. Ouro líquido. Sim, a coroa de espinhos transformava o fluído sanguíneo na substância dourada tão preciosa.
Anamélia se levantou, com o coração batendo de contentamento. Ainda nutria aquele temor que carregava no espírito, entretanto os olhos castanhos do homem representado não mais a deixava encabulada. Deu passos calmos, tocando os sapatos no sangue que cobria o chão, enquanto tudo era iluminado por um brilho sagrado e solene. A estátua se livrou dos pregos, curvando seu corpo para a mão da garota tocasse o objeto desejado. Quando Anamélia o pegou, os lábios de mármore lhe beijaram a fronte; e tudo se concluiu.
A quinta tarefa estava realizada.