A pedra deveria estar contente. Ou talvez não. Mas era provável que sim, já que Anamélia retornara com o primeiro item. Este era o problema de ser um objeto inanimado: falta de expressão facial. Ou talvez fosse melhor assim.
— Está uma noite fria lá fora — comentou a garota, que ainda se recuperava do trajeto de volta.
— Sim, está. Mas aqui a temperatura é amena. Se não fosse o meu estado petrificado, eu poderia aproveitar melhor.
Borboletas voavam sobre flores e folhas coloridas, próximas das abelhas que colhiam néctar para suas colmeias. Os olhos heterocromáticos da jovem as acompanhavam por breves instantes, no aguardo da tarefa seguinte.
— Agora que tenho as lágrimas da donzela que morreu por amor — começou a pedra —, preciso de alguns cogumelos que a Morte tem em seu jardim.
— A Morte tem um jardim?! — assombrou-se Anamélia.
— Sim. É um lugar incrível! É onde ela cultiva árvores feitas dos ossos dos enforcados, flores oriundas do sangue das crianças natimortas, frutos originários das mais diversas formas de morrer. E há os cogumelos que nascem das cinzas dos que foram queimados vivos. Eu preciso de alguns, não mais do que três.
— Parece ser perigoso, não?
— E é, aliás. É uma tarefa impossível para um humano que nunca tenha estado perto de morrer ou visto alguém ser morto.
Sim, a garota havia testemunhado a morte.
Era um fim de tarde agradável, e, após o gostoso piquenique, planejavam uma ida ao teatro. O inverno aquele ano foi brando, sem tantas tempestades de neve ou noites gélidas, e os passeios da família eram até comuns e divertidos.
— Eu vi a morte de meus pais — sussurrou, segurando as lágrimas.
— E encontrou o casal de ghouls no cemitério. Dois fatores que a qualificam para realizar a tarefa, minha cara escolhida. Mas entenderei perfeitamente se não quiser fazer, afinal a Morte pode se zangar com você e exigir sua alma como tributo por sua ofensa. Posso conviver com minha condição por mais alguns anos, talvez décadas ou séculos.
Anamélia se incomodou com aquilo. Não pretendia desistir do sonho de ir a um mundo mágico tampouco deixar de ajudar alguém que poderia leva-la ao seu objetivo. Era uma atitude egoísta, claro, mas era também a chance que tanto orou para ter.
— Como chego ao jardim da Morte? — perguntou, determinada a continuar.
— Certeza de que quer mesmo prosseguir?
— Sim. Até o fim.
Era o que a pedra precisava ouvir.
— Próximo daqui há um orfanato. Lá há uma horta a qual as crianças mantêm como atividade cotidiana. Num velho limoeiro habita um gnomo. Antes de pedir que ele a leve ao jardim, ofereça coisas até que ele aceite. Uma vez que tenha aceitado um presente, ele é obrigado a retribuir a gentileza com um favor, independente de qual seja. Peça apenas que lhe tragam os cogumelos!
— Não precisarei ir lá?
— Não, não agora. Na verdade, você poderia até ir, contudo sua bondade para comigo me comoveu a ponto de me recordar do velho gnomo. Só temo, entretanto, que ele não vá aceitar um presente. Tente! Vai que você tenha sorte.
— E se eu não tiver?
— Aí volte aqui e contarei o outro meio!
Anamélia então partiu.
O orfanato que ficava próximo ao parque era o mesmo em que a jovem passara muitos anos de sua infância. Sempre achou o lugar bastante sombrio, com as freiras e madres sempre severas, pondo as crianças para rezarem todas as manhãs e noites; diversas vezes, foi punida por cometer pecados, como diziam as responsáveis pela instituição.
Para sua mente infantil, ali era um antro de demônios disfarçados de anjos. E o zelador estava entre os mais sádicos.
Em noites frias como aquela, o silêncio imperava sobre o casarão de três andares, os ratos repugnantes percorriam os corredores até os quartos das meninas, com promessas de brincadeiras que jamais deveriam ser contadas aos adultos. Coisas eram feitas em troca de guloseimas e brinquedos, e tudo aquilo nunca pareceu bom para os sonhos de Anamélia.
Ao ser adotada, ao menos se sentiu livre dos horrores que sofreu por tanto tempo. Livre do bafo de tabaco do zelador e de seu toque áspero.
A horta não parecia tão bem cuidada quanto se lembrava. As verduras, legumes e hortaliças estavam murchos, sem o viço esperado. Talvez fosse falta de dedicação, pois tudo aquilo que não recebe amor tende a murchar no frio do inverno. O limoeiro, contudo, resistia bem ao clima, tendo belos frutos de casca verde e folhas vistosas. Ela se perguntava, sempre o que via tão bonito, como aquilo era possível; e agora sabia: um gnomo morava ali.
Mas como chamar uma criatura que nunca tinha visto antes? Deveria bater no tronco do arbusto ou sussurrar apenas, tentando adivinhar o nome do morador?
Na dúvida, a garota tentou um pouco de cada coisa que pôde se lembrar, cansando-se após meia hora. Sentou-se ao lado do limoeiro, encolhida, pensando que não obteria êxito naquela tarefa. Entristecida, começou a cantarolar uma melodia que combinava com aquele instante; sua voz era harmônica, num tom lírico e comovente, e a canção dava belos contornos ao redor de onde estava.
Atraído pela música tão familiar e encantadora, o gnomo saiu de sua toca, notando a jovem, cujo rosto estava molhado pelas lágrimas. Reconheceu-a, apesar de ter se passado alguns anos, e soube que ela desejava alguma coisa. Pigarreou, fazendo-a fita-lo.
— Eu me lembro de você, menina — falou, com a voz aguda. — Você sempre cuidava das folhas deste limoeiro, regava-o em épocas de calor e o adubava com esterco e folhagem, garantindo a produção de limões saborosos os quais todos se deliciavam com sucos e outras iguarias feitas pela velha cozinheira.
Anamélia sorriu.
— Mas o que a traz aqui, com seus olhos de gato tão tristonhos e esta canção de pesar que me despertou de meu sono de inverno? Sei que quer algo de mim, e creio que darei para você por gratidão aos dias dedicados no zelo por minha morada.
O coração da órfã pulsou com alegria.
— Eu preciso de alguns cogumelos que a Morte cultiva no seu jardim — disse ela, com simplicidade.
O gnomo, que era um pigmeu de meros dez centímetros de altura e pele esverdeada, franziu as sobrancelhas grossas. Coçou a careca, buscando compreender para que uma menina tão gentil precisaria de algo tão mortífero.
— Tem certeza? — retrucou, encarando-a com seus olhos marrons, almejando identificar o indício inexistente de maldade necessário para tal pedido.
— Sim, tenho sim.
Ele suspirou. Havia prometido.
— Certo — falou, por fim, antes de voltar para a toca.
Outra meia hora se arrastou com correntes pesadas. E durante este período, impaciente, Anamélia cantou e cantarolou, assobiou e se calou. Uma espera ansiosa e demorada, tal como é o aguardo por notícias esclarecedoras. Sem sono, a monotonia cansava, e ainda assim ela esperou.
Quando o gnomo retornou, com um ar constrangido, segurava um embrulho que foi logo entregue para a garota. Ele nada mais disse ou fez; apenas desapareceu, deixando-a sozinha e confusa.
Contudo, a segunda tarefa estava realizada.