XXII - anjos

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Persephone

Meses depois...

Deve haver algo escrito sobre nós em algum lugar, pois uma história tão destrutiva, tóxica e quente não poderia ser simplesmente ignorada.

É bem mais do que Hades e Persephone ou Persephone e Hades! Não posso admitir que alguém em algum dia tente nos diminuir a menos que isso. Representamos, entretanto, o amor e o ódio. Com isso, mostramos a nós mesmos que também temos nossos demônios, mas que caberá a nós lutarmos contra eles ou permitir que eles nos dominem. 

E cada ser humano, por sua vez, também carrega seu próprio demônio... Aquele lado sombrio por trás de um sorriso, a voz interior que sussurra palavras corrosivas e os pensamentos reprimidos. A verdade é que a mente é o nosso próprio deus e diabo. Ela nos conduz e nos induz a coisas inimagináveis, porém isso pode ser ou não evitado.

Eu cometi erros horríveis, mas só quando Hades perdeu o controle que ele pode realmente me compreender e se entender. Com nosso sangue podre e o olhar gelado, percebemos e admitimos a nós mesmos que nem tudo está escrito e que nosso destino ainda não está concretizado.

Após a morte de Cecília tudo virou de cabeça para baixo. Hades se tornou ainda mais sombrio e eu devo admitir que gostei. Todos sempre tiveram uma visão tão sombria sobre ele quando na verdade ele era apenas um homem com fogo nos olhos e o coração gelado. Agora, entretanto, após o veneno e a percepção que somos tão jovens ainda, ele talvez tenha se tornado aquele que as pessoas tanto temiam.

Devo agradecer a Cecília algum dia. Talvez não nessa vida ou na próxima, mas eventualmente quando ela reencarnar. Até lá terei vivido as várias versões de um deus e um demônio ao lado daquele que me foi destinado.

_Eu não acredito que estamos fazendo isso! - dei um trato no cigarro recém acendido, joguei as pernas no painel do automóvel conversível e olhei para Hades.

_Muito menos eu. - ele murmurou e me encarou  com o semblante fechado. - Mas você fica linda em contraste com o Sol.

_É porque você ainda está acostumado com a escuridão. - sorri de lado e ele deu de ombros.

_Para onde vamos, querida? - indagou e apertou fortemente o volante.

_Não sei, Hades. Estamos de férias! Não deveríamos ter um roteiro ou algo assim?

_Que tal férias no meu Inferno? - Hades me encarou pelo canto dos olhos e eu ri alto.

_Oh, porra! Dessa vez não, eu imploro! Vamos para Dubai, Los Angeles, Las Vegas ou qualquer merda do tipo. Mas o Inferno não, por favor. - eu disse bem humorada e ele sorriu.

Haviam infinitas possibilidades. Nós poderíamos ir para qualquer lugar, mudar de nomes quantas vezes fosse necessário e roubar pequenos bares na beira da estrada. Nós poderíamos simplesmente fazer o que fosse preciso. Viver e morrer até cansar.

_Los Angeles? - Hades indagou curiosamente, dando partida no carro.

_E por que não? - ergui uma das sobrancelhas.

A fumaça do meu cigarro desapareceu no ar quando Hades acelerou o carro e avançou estrada a fora. Aquele era o mesmo caminho em que nos encontramos aquela noite. Talvez tudo tivesse que começar e terminar assim.

_Eu quero conhecer o mundo com você. - falei sorridente olhando para ele. Hades esboçou um pequeno sorriso ainda sem me encarar.

Ele estava tão gostoso sem aquelas armaduras pesadas, usando simplesmente uma camiseta branca com um jeans surrado e óculos escuros. Seu cavanhaque tão bem feito, mas ainda assim tão natural, tal como seus deads curtos. A verdade é que ele estava estonteante com trajes humanos. Já eu parecia a mesma prostituta com aquela saía de couro e regata preta. 

Ainda assim estávamos combinando um com o outro.

_Você é meu mundo, baby. - Hades respondeu, olhando de relance para mim.

O carro era conversível e já estávamos chegando no fim da tarde. O sol se punha na linha do horizonte, por trás dos rochedos e a paisagem seca. Era verão e aquele calor era muito melhor do que o do submundo. A correnteza de ar fazia meus cabelos voarem. Eu me sentia tão viva e tão feliz ao lado daquele homem!

_Você diz isso para todas? - me inclinei em sua direção ao escorregar pelo banco de couro envernizado.

Hades sorriu de lado. Aquele certamente havia se tornado o maior charme dele depois de tudo.

_Não! Só para algumas. - ele respondeu sem olhar para mim.

_Cretino! - eu gruni, cravando minhas unhas vermelhas em sua bochecha e virando seu rosto para mim.

_Perse, eu estou dirigindo! - ele avisou, prendendo o riso.

_Que se dane! - e o beijei ferozmente antes que ele dissesse qualquer outra coisa porque eu precisava daquilo tal como se minha vida dependesse daquele beijo.

Seus lábios grossos e sua língua quente se encaixavam perfeitamente com a minha boca. Era como se fosse feito para mim.

_Você é louca! - Hades exclamou rindo, virando o rosto de volta para a estrada. Nós tínhamos entrado na contramão, mas por sorte aquela estrada era deserta. - Quer nos matar? - ironizou.

_Seria um favor, não? - eu disse, esticando as pernas e em seguida dando um trago no meu cigarro.

_Não.

_Por quê?

_Porque estamos de férias e eu não quero voltar para casa tão cedo.

Eu ri.

_O Inferno nos aguarda, meu bem.

_É, mas ele pode esperar. - olhou em meus olhos brevemente. - A Cidade dos Anjos que nos aguarda.

Eu ri alto e o abracei de lado.

_Quanta ironia, Hades!

_Aprendi com você.

_Isso é uma mentira e você não mente.

Ergui uma das sobrancelhas, mas em seguida tornei a rir quando ele disse, simplesmente:

_Foda-se! - ele também não xingava. Porém, quem se importa? - Eu não minto quando digo que te amo.

_E você me ama? - meus olhos se iluminaram quando ele olhou dentro deles.

_Amo mais do nunca!

E nos beijamos novamente.

Hades estava diferente, mas eu desejava viver todas as mudanças com ele, sendo elas boas ou ruins. Porque eu o amava e aquele amor era a razão da minha existência.

A verdade é que eu iria com ele para onde fosse necessário, desde o céu ao inferno. Eu tinha a certeza de que poderíamos rodar o mundo todo, mas sempre iríamos retornar um para o outro.

Por toda a eternidade...

Através ou não da Escuridão!

[...]

Hades também ficou conhecido na mitologia grega por raramente abandonar os seus domínios, ou seja, quase nunca sair do mundo profundo para ir a outro lugar...

Até que ele decidiu tirar férias.

Através da Escuridão.
- Meury Lee.


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