IX - semideus

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Com o tempo - se é que existisse tempo -, eu me acostumei àquela rotina dividida entre ficar dentro do quarto trancafiada por séculos e depois ir ao purgatório me encher de bebidas e drogas.

Ao contrário do que se possa imaginar, eu não tinha amigos lá, nem tampouco afinidade com alguém. Como deusa eu era invisível para os mortais, mas todos os seres sobrenaturais - se assim eu puder chama-los -, conseguiam me ver e certamente me odiar mais do que a mim mesma. Isso porque a minha presença era insignificante e esmagadoramente chata. Eu não tinha nada a acrescentar na boate, nas salas de hidromassagem, nas saunas ou em qualquer lugar dali. Para as ninfas peitudas ou simplesmente garotas de companhia, eu era apenas um corpo vazio orbitando em seu espaço. E o pior é que elas estavam certas.

De certo modo eu estava morta, mas para a minha tristeza os sentimentos ainda estavam enraizados na minha alma. Eu sempre fui muito depressiva e até tentei suicídio algumas vezes quando ainda trabalhava como garota de programa, no entanto, nada pior poderia acontecer naquele inferno de lugar.

Hades destruiu a minha vida.

Em alguns momentos eu gostava da companhia dele porque de certo modo ele era o único com quem eu poderia conversar, mas em outros eu o odiava com todas as minhas forças pelo fato dele ter arrancado a minha maldita humanidade.

E não que minha vida na Terra fosse boa. Eu sempre tive que violar leis para sobreviver e fazer coisas imagináveis para me sobressair da morte. No fundo era como se eu estivesse tentando evitar o meu encontro com Hades e o mundo profundo. No fundo eu só estava fugindo inconscientemente do meu cruel destino.

_Posso me sentar aqui? - uma voz masculina surgiu em meio a música assustadoramente alta.

_Tanto faz, eu já estava de saída. - tentei me levantar, mas seu toque frio me impediu.

_Por favor, fique.

Então eu ousei a olhar para o lado, me deparando com aquele par de olhos cinzas. Tão cinzas que chegavam a ser cristalinos e mortais.

_Me solte! - eu disse pausadamente, entrando em combustão porque enquanto ele era gelo, eu era fogo.

_Desculpe, não quis ser grosso com você. - levantou as mãos em sinal de redenção.

_Mas foi. - puxei meu braço para mais perto do meu corpo e analisei o rosto do homem a minha frente. - Quem é você?

_Héracles. - sorriu em resposta, presunçoso. - E você deve ser a rainha Persephone.

_Como sabe? - me sentei de frente para ele, curiosa. Estávamos no balcão do bar e havia uma espécie de bolha de isolamento que nos envolvia, uma vez que ninguém ousasse se aproximar, nem mesmo Paris.

_Ora, quem não conhece a deusa mais linda!? - Héracles perguntou retoricamente, sorrindo ainda mais.

Como todo deus ele era sim muito bonito. De grandes e marcantes olhos cinzas, pele bronzeada e músculos definidos. Era uma espécie de monumento vivo com aqueles cabelos ondulados e loiros que iam até os ombros. Parecia ter consciência do seu poder sobre as mulheres mesmo que vestido de forma tão simples, apenas com uma camiseta preta e jeans.

Não sabia ao certo, mas na mitologia ele era o semideus também conhecido como Hércules, aquele que derrotou grandes monstros para se redimir como homem e atingir a imortalidade.

_Seja mais direto, por favor. - sorri cinicamente, não gostava daquele tipo de pessoa que fazia grandes rodeios para atingir um único ponto específico. - O que você deseja de mim?

_Talvez a sua companhia seja o bastante.

_Você não parece ser o tipo de homem que se contenta com tão pouco.

_Certamente e você é muito para mim. - Héracles penetrou em meus olhos e eu fechei a cara.

_Seja como for, tenho coisas para fazer. Adeus, Héracles. - me levantei bruscamente, saindo daquele transe.

_Que coisas, minha flor? - Héracles se levantou em seguida, ficando frente a frente comigo. Estava perto demais, de forma que eu conseguisse sentir seu perfume amadeirado. - Ficar trancada no quarto enquanto se lamenta pelo o inferno que está passando?

Tive um súbito espasmo quando o ouvir dizer tal coisa, pois ele me atacava ao mesmo tempo que jogava a verdade na minha cara. Porém apesar de me sentir ofendida, ainda assim eu tinha que concordar com ele.

_Sim! - respondi automaticamente, virando o rosto de forma brusca para o lado.

_Hades é um filho da puta mesmo. Como pôde fazer isso com alguém como você? - Héracles ainda me encarava, mas eu não tinha força suficiente para olhar para ele. - Eu te observava lá na Terra esperando por um momento em que pudesse te conhecer pessoalmente, entretanto, não pensei que fosse aqui no purgatório e ainda por cima desta forma. Você não me parece feliz.

_E em algum dia eu fui? - sorri amargamente, voltando-me a ele por fim.

_Talvez não até me conhecer. - respondeu sem expressão alguma.

Héracles não sorria, não tinha o semblante fechado e nem tampouco chorava. Ele apenas me encarava como se eu fosse o mundo em que ele habitava. E a intensidade em que ele me tocava sem ter que usar as mãos era incrivelmente devastadora.

_Por que diz isso?

_Porque eu posso te tirar daqui, Persephone... mais uma vez.

_Achei que fosse a primeira vez que você tivesse me visto. - ergui uma sobrancelha, desconfiada.

_A primeira vez em cem anos. - e afundou uma mecha do meu cabelo atrás da orelha. - Você vem comigo?

_Por que eu iria? - dei um passo para trás, colidindo com o banco, então Héracles se aproximou ainda mais, me deixando encurralada e nervosa.

_Porque você sempre vem. - ele disse com o rosto muito próximo ao meu.

_E se dessa vez eu escolher ficar? - perguntei mais a mim mesma do que a ele.

Eu não sabia o que estava acontecendo, mas lapsos de memórias piscavam em minha mente a todo instante. E neles haviam guerra, gritos de dor e sangue sendo derramado. Lembranças que eu sequer sabia que existiam. Lembranças que se alguma forma nunca aconteceram, mas que me pertenciam.

_Então terei de te levar a força. - sorriu de lado e seus olhos cinzas, pela primeira vez em cem anos, congelaram-me internamente.

ATRAVÉS DA ESCURIDÃOOnde histórias criam vida. Descubra agora