VI - pecado

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Cecília era a governanta do mundo inferior. E ao que eu podia perceber, quando eu não estava lá assumindo o papel de rainha, ela era a minha substituta. Eu não sentia inveja dela, acredite. Por mim ela se casava com Hades e os viviam - naquela morte silenciosa - felizes para sempre.

Cecília era uma espécie de demônio e ela tinha fortes traços que mostravam isso. Seus olhos vermelhos tal como os de Hades, sua agressividade insana e aquele corpo escultural que certamente não fazia parte do meu mundo.

Ela era perfeita para Hades e parecia amar ele mais do que todas as outras coisas. Internamente eu pedia aos deuses que Hades se apaixonasse por ela e me deixasse ir.

Mas, mesmo que apaixonado, ele nunca me deixaria ir.

_Cecília, onde está o Hades? - eu perguntei me aproximando da mulher alta de cabelos longos e flamejantes que estava de costas para mim.

Ela virou o rosto em minha direção com as sobrancelhas franzidas e replicou:

_Por que eu saberia?

Eu parei ao seu lado e a encarei fixamente. Cecília era realmente fascinante.

_Porque você o conhece melhor do que ninguém.

Ela sorriu cínica e pôs as mãos na cintura de frente para mim. Senti o clima ficar ainda mais quente, mas tinha certeza de que aquilo era apenas uma alusão com a realidade porque Cecília irradiava suas emoções em forma de calor e conforme seu ódio por mim aumentava, mais quente ficava. Ela também conseguia entrar em nossas mentes, ler pensamentos e bagunçar nossas emoções. Era uma espécie de maga demoníaca, não sei.

_Ninguém conhece ele além dele mesmo. - Cecília respondeu com desprezo e arrogância para comigo.

Eu suspirei cansada deixando a minha franja cor-de-cobre atrás da orelha. Eu não era bonita como Cecília, mas isso também não me incomodava.

_Mas você sabe onde ele pode estar? - eu insisti. Precisava de Hades por mais que tentasse negar.

_Escute aqui, Persephone: eu não sou sua subordinada. Se quer encontrá-lo, procure você! Tenho coisas mais importantes com o que me preocupar. - e se virou para ir embora, mas eu segurei em seu braço forçando a ficar.

Tocar seu corpo realmente queimava, mas eu também era fogo, então nada era tão quente o suficiente a ponto de me saturar.

Nada excerto Hades.

_Tire suas mãos de mim! - Cecília rosnou me encarando ameaçadoramente.

Estávamos em um corredor escuro do palácio. Eu mal sabia  como havia chegado até ali. A iluminação era feita por tochas de fogo que ficavam fincadas nas paredes de rocha e o clima não poderia ser menos pesado.

Eu conseguia ouvir o murmúrio das chamas que nunca se apagam e o silêncio eternizado na escuridão.

_Eu quero apenas que você me diga onde ele está. - eu disse em resposta sem obedecer sua ordem.

_Você deveria se afastar agora, Persephone, antes que eu fique ainda mais irada.

Cecília tinha sangue nos olhos. Ela realmente estava com muito ódio de mim porque isso era tudo o que ela conseguia sentir. O seu cabelo vermelho caía pelo rosto a deixando ainda mais sombria.

Eu não sabia se a deixava em paz e ia atrás de Hades sozinha ou se ficava ali e apenas observava até onde ela poderia chegar. 

_Não vou a lugar nenhum até que você me diga onde ele está, pois tenho a impressão de que algo está acontecendo e quero saber o que é. - eu disse por fim, decidindo lutar contra minha pouca sanidade.

_Você realmente não tem medo do perigo, não é? - debochou, puxando o braço violentamente e se soltando de mim.

_E por que teria? O que você pode fazer contra mim? Me matar? - sorri irônica, cruzando os braços.

_Existe coisas muito piores que a morte, querida. - Cecília avisou com aquela sua voz baixa e sombria.

Engoli a seco vidrada naquele par de olhos vermelhos.

_Como o quê? - eu estava ficando louca ao confrontar aquele demônio, mas era isso ou nada.

_Eu. - disse e em um piscar de olhos desapareceu da minha frente.

Eu olhei em volta confusa e assustada, mas não existia rastro algum da sua presença ali naquele corredor obscuro e silencioso.

Cecília nunca seria minha amiga ou aliada, pelo contrário, na sua cabeça seríamos sempre rivais. Mas eu não sentia raiva dela, não mais. Meus sentimentos por ela eram como em uma lástima, pois eu sabia que ela queria estar no meu lugar, mas que Hades havia escolhido a mim e isso era dolorosamente irreversível.

Eu só precisava encontrar uma forma de fugir do mundo profundo e dizer adeus a àquele pesadelo. Mas eu não conhecia sequer um terço do inferno enquanto ela sim, o que me levava a crer que eu só escaparia dali com sua ajuda.

Entretanto, eu ainda precisava de Hades. Queria encontrá-lo, pois ele parecia estar fugido. Eu não o via há sabe Deus quanto tempo.

Eu queria negar, no entanto, de alguma forma sentia falta dele. Afinal de contas, ele era o único com quem eu podia conversar.

Mas, naquele momento em especial, meu interesse não estava na conversa, e sim onde elas poderiam me levar. Eu também precisava da ajuda de Hades, apesar de não ser forte o suficiente para admitir.

Hades era um pecado tentador do qual eu jamais me permitiria experimentar. E não que eu fosse uma santidade com medo de perder a pureza. O meu temor era experimentar e me viciar...

Ainda mais.

ATRAVÉS DA ESCURIDÃOOnde histórias criam vida. Descubra agora