11- Nicolas

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Até o cheiro do álcool não o estava incomodando tanto naquela noite.

O Porco estava embriagando-se com o compadre no alpendre. Já haviam secado um litro da cachaça branquinha, mas ainda havia uns dois intactos. Bebiam saboreando o caititu frito. As gargalhadas ressoavam pela casa. Nicolas foi a pedido de sua mãe deixar um prato com a carne, e não se surpreendeu com o assunto da conversa dos dois, afinal criaturas nojentas só podem conversar sobre coisas nojentas, não é? Involuntariamente as lembranças de Nicolas fizeram-no viajar dois anos atrás, quando ele tinha 11...

... O Ogro o havia levado até o estabelecimento de dona Joana, dizia que era hora de Nicolas virar um homem. A fama das filhas de dona Joana era conhecida pelos arredores, e atraía os mais diversos tipos de homens, e elas eram das mais diversas idades possíveis... Nicolas lutava para esquecer o que acontecera, não queria mais lembrar do pai o encarando e mandando ele fazer coisas... e ele chorando... e ela... e os tapas... o enjoo... sua cabeça sangrando... e a escuridão... Acordara depois já em casa com a mãe acariciando seus cabelos...

"Está surdo, moleque!" A voz do Bêbado Imundo o tirou das lembranças, no entanto retornou com uma vontade insistente de vomitar. "Deixe o prato aí e vá em bora."

Nicolas obedeceu. Iria deixar o Porco aproveitar um pouco sua última noite, e o fato dele estar ébrio era de muita importância para seus planos. Estava saindo quando viu um pacotinho da droga, que compadre Luiz sempre trazia, repousando sobre uma cadeira ao lado deles. Aquilo custava caro, o pai gastava mais da metade do dinheiro que conseguia com aquilo.

Ele entrou dentro de casa e sentou-se ao lado da mãe e do irmão no velho sofá. Ficaram ali por muito tempo, os dois meninos deitados cada um de um lado, apoiavam as cabeças na perna da mãe enquanto ela acariciava seus cabelos cantarolando. Alguma coisa no modo de cantarolar da mãe estava diferente, Nicolas observou, parecia que ela estava sentindo que as coisas ali mudariam. Uma beija-flor entrou voando na sala, Nicolas sentiu o corpo de sua mãe enrijecendo. Diziam que isso era um mal presságio, mas Nicolas que nunca acreditara nessas crenças agora tinha certeza de que não deveria, pois acreditava que o que iria acontecer naquela noite seria o abre-alas de bênçãos. A pequena ave deu dois círculos na sala e saiu pela mesma porta.

"Será qual o significado disso?" A voz melancólica da mãe perguntou a ninguém em específico.

"Não deve ser nada, mãe..." Nicolas tentou confortá-la, mesmo sabendo que seria em vão.

As conversas dos dois lá fora se elevaram. Nicolas levantou-se do colo da mãe e olhou pela janela de vidro. O compadre Luiz estava se despedindo e indo embora. Cambaleou até seu velho jipe e com três tentativas conseguiu dá partida. O pai continuou sentado e depois de algum tempo:

"Cadê minha família que está deixando eu ficar aqui sozinho no relento." Sua voz repugnante chegou até a sala. A mãe levantou. E os três saíram. "Aí estão eles!" Exclamou o Ogro ao ver os três se aproximando.

A mãe riu. Sentaram-se na frente dele. O pacote com a... cocaína? Nicolas não tinha certeza se era esse o nome, repousava nas pernas do pai. Pela aparência de seu nariz, ele já cheirara um bocado. Ao seu lado aberto estava um litro com pouco mais da metade da cachaça.

"Vamos entrar meu bem?" a mãe chamou.

"Só quando secarmos esse litro mulher." Disse ele enchendo um copo e entregando à esposa. Ela recebeu contra a vontade e fingiu tomar um pouco. "E vocês vão ficar só olhando?" Disse ele encarando os dois irmãos. Encheu um copo e entregou a Daniel. "Beba!" Rugiu, e o menino tremendo de medo bebeu um pouco fazendo uma careta horrível. Nicolas viu a mãe abrindo a boca para protestar, mas a fechou de novo, sabia que não conseguiria nada. O Ogro gargalhou com a expressão de Daniel. E cortou o riso quando Nicolas recebeu o copo do irmão e tomou inteiro em dois grandes goles sem fazer o menor trejeito.

Ficaram em silêncio por um tempo. Os quatro observavam o brilho da lua prateando a fazenda, quando Nicolas ouviu o miado... O velho Leice aproximara-se sem ninguém notar e estava sentado no meio deles. O pé do Monstro foi rápido e desnecessário no dorso do animal. O gato bolou no chão.

"Eu já falei para deixarem esse gato preso no quarto, principalmente à noite."

Até ali, Nicolas não se surpreendera com nada, porém as coisas mudaram quando Leice que se recuperara rapidamente do golpe, colocou suas garras pra fora e pulou em cima do Ogro. Os miados do gato junto com os rugidos de dor do Animal preencheram o silêncio da noite. Os três assistiram paralisados a cena. Nicolas sentiu vontade de rir, mas a vontade logo se esvaiu completamente quando o Ogro Maldito conseguira envolver com sua mão gorda o pescoço do gato. Leice havia feito um ótimo serviço, o corpo do Gordo Bêbado estava todo arranhado e sangrando, principalmente o rosto... Mas Nicolas percebeu que agora era o fim pro animal.

"Animal maldito dos infernos!" Xingou o pai, pegando o litro da cachaça e derramando sobre o pobre gato que miava desesperado. "Agora você vai ver uma coisa." Os irmãos e a mãe ainda paralisados. Nunca suspeitaram que a crueldade daquela Criatura Nojenta chegaria aquele ponto. A mão do pai foi ligeira até o bolso e tirou um isqueiro... acendeu-o murmurou um último xingamento ao gato e ateou fogo soltando-o no chão.

Os gritos de Daniel misturaram-se aos miados agonizantes do gato em chamas e a gargalhada nojenta do Maldito Porco Bêbado. Daniel tentou pegar o gato, mas esse começou a correr pela grama verde se debatendo e soltando os mais horríveis dos sons.

O tênue brilho da inocênciaOnde histórias criam vida. Descubra agora