3 - Nicolas

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Ele colocou o pote com a gosma dos insetos dentro de sua bolsa atrás do botijão, que ficava embaixo da pia.

Estavam jantando. Apenas os três. O Maldito Porco Bêbado ainda não tinha chegado. A mesa só tinha quatro lugares, ou seja, não era muito grande, mas mesmo assim, raramente ficava cheia. Nicolas sabia que ele só chegaria na flor da madrugada. Era sempre assim. Mas isso um dia iria mudar... Sim, isso vai mudar...

Com o termino da refeição, em que os três já estavam satisfeitos da saborosa sopa de batata, a mãe recolhera os pratos e os colocara na pia. Em seguida juntaram-se na sala e começaram o típico jogo de charadas. Ele adorava aquele momento. Parecia ser o único momento em que os anjos paravam para admirar a felicidade dos três. Por que não era sempre assim? Por que não era apenas os três?

Era tão bom ver o rosto de sua mãe rindo. Era uma coisa rara. Porém muito diferente de antes. Ao contrário do irmão, ele lembrava como era o rosto dela antes das agressões. Era um rosto rosado e redondo. Os olhos eram de um brilho vívido, no qual as águas do oceano nem chegavam perto. O cabelo formava um manto loiro caído sobre as costas. Mas agora... O rosto redondo e vivido, afinara e ganhara um tom opaco. Os olhos de brilho vívido agora viviam assustados e fundos. E o cabelo antes sempre bem cuidado agora vivia desgrenhado... Mesmo assim era sua adorada mãe, sua querida mãe. Era a pessoa que mais amava no mundo. E se ninguém parecia fazer nada, ele deveria, não?

O coração dos três aceleraram na hora que o ronco da velha caminhonete foi ouvido. As risadas cessaram instantaneamente. A mãe correu até a janela para confirmar o óbvio.

"Rápido crianças, bebam e subam, já está tarde".

Não que Nicolas tivesse medo dele, mas obedeceu por sua mãe. Foi até a cozinha tomou um pouco de água, e com cuidado para ver se a mãe não estava vendo, ele pegou o pote com os restos dos insetos e despejou parte da gosma verde dentro da panela com a sopa do Ogro. Ali só tinha a parte dele, então não corria o risco de mais ninguém comer além do Maldito Porco. Ele mexeu a sopa e a substância misturou-se com o caldo de batatas, ganhando uma tintura um pouco mais amarelada.

Quando guardou o pote e a bolsa no mesmo lugar, e se preparava pra sair, ele viu seu irmão a observá-lo. Sem muita exaltação simplesmente levou o dedo indicador aos lábios e fez sinal de silêncio ao garotinho assustado.

"Não é veneno." (Ainda). Sussurrou ele ao garoto. A ideia de envenenar o Porco de uma vez já tinha passado por sua cabeça, mas se assim o fizesse sua mãe provavelmente ficaria encrencada. Por isso contentava-se somente com essas pequenas brincadeiras que o serviam de diversão pessoal.

Os dois retornaram à sala correndo. Cada um deu um beijo em sua mãe, e com um "Durmam com Deus"! dela, eles subiram.

Com uma rápida olhada para trás, Nicolas percebeu que qualquer vestígio de alegria que até poucos minutos sua mãe esbanjava esvaiu-se. Sua expressão agora era pura melancolia. Por mais que ele tentasse evitar, uma parte dele dizia que aquilo era culpa dela mesmo. Pois ele não esquecera do dia em que a chamou para fugirem os três juntos, e do dia em que falara para denuncia-lo, e a resposta nos dois dias foi a mesma:

"A vida na cidade é dura meu filho, e ainda mais para uma mulher sem marido". E por mais que ele insistisse na ideia ela detinha-se inflexível.

E já que isso não tinha dado certo só restava uma opção. O Maldito Porco é que teria que sair. E ele, como o mais velho, era quem tinha que dá um jeito nisso. Ideias era o que não faltava, mas ele precisava analisar bem todas elas.

Entraram no quarto e fecharam a porta. No canto do quarto, deitado dentro de uma cesta forrada com uma almofada encontrava-se o velho Leice. O animal já idoso, começara a perder pelos. Era de cor preta, porém com uma grande faixa branca que descia pelo seu queixo e percorria toda sua barriga. Antes um gato ativo e sagaz, hoje um preguiçoso e lento. Porém seu irmão ainda o adorava. Quem não gostava muito do animal era o Porco. Já perdera a conta das inúmeras ameaças que foi feita ao gato.

Eles ouviram o carro parar na garagem. E pouco tempo depois a voz rouca e dura dele entrando na casa e falando com a mãe. Não era difícil imaginar a cena dele dando um beijo nela, e ela tendo que aturar o bafo dele sem fazer cara feia. O irmão foi até sua cama e se embrulhou por inteiro. Ele continuou ali parado, queria ouvir o máximo possível.

As vozes eram um contraste perfeito. Uma grossa e rústica. A outra fina e calma.

" ... Essa sopa está muito boa, meu bem..." Veio um trecho da conversa.

"Que... gostou". A voz fina que falou dessa vez.

"Mas, você sabe... não gosto de sopa". A voz grossa se alterou. "Onde está o meu bife?"

"... Acabou, meu amor, você foi comprar... tinha acabado".

"Mas eu já cheguei" A voz soou trovejante. "Então não tem desculpa... pegue um pedaço... e vá fazer pra mim... AGORA!"

"..." Nicolas pensou ter ouvido alguma coisa de sua mãe, mas o que veio depois abafou tudo.

"O que você disse?" A voz era um rugido. Ele ouviu um som de porcelana se despedaçando. O Porco havia atirado o prato de sopa na parede provavelmente. "Eu dou um duro pra cuidar de vocês, faço de tudo, e a única coisa que peço é um pedaço de bife pra comer e você ainda diz isso..."

"Desculpa... eu vou fazer, meu amor". Aquilo foi o suficiente para irritar Nicolas. Por que ela não revidava? Apesar de ele ser o dobro dela, ele estava bêbado ela conseguiria facilmente ganhar dele...

Ele ouviu resmungos vindo de debaixo do lençol do irmão. Foi consolá-lo. Às vezes esquecia-se de como o irmão devia estar se sentindo. Daniel era mais novo que ele. Mais fraco que ele. Sempre precisava de um ombro pra chorar.

"Não se preocupe, maninho, isso vai mudar". Eu vou acabar com isso!

O tênue brilho da inocênciaOnde histórias criam vida. Descubra agora