PRÓLOGO

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PRÓLOGO

Londres, 1827.

A Regent Street parece idêntica à recordação que guardo da última vez que estive aqui. As mesmas fachadas elegantes nas lojas. O mesmo aglomerado de mulheres ociosas indo de um estabelecimento a outro. A mesma escória de trabalhadores transitando, invisíveis, no meio de tanta riqueza fútil. Tudo igual. Exceto eu. Nesta ocasião, enquanto caminho minha cabeça está erguida, meu corpo está vestido com tecido de qualidade e corte assimétrico, as solas dos meus sapatos não são mais gastas a ponto de eu sentir o chão tocando minha pele. Eu deixei de ser invisível. Dinheiro, pelo que noto, compra aceitação social... algumas vezes.
— Como foi com seu filho? — preferi evitar o assunto ontem, quando vi Jack retornar ao hotel taciturno e calado, mas agora ele parece estar inquieto demais. Talvez conversar ajude.
— Ele não quis me receber em sua casa. — Jack dá de ombros, como se o fato não fosse grande coisa.
O lampejo de dor em seus olhos desmente sua falsa indiferença. E é o máximo de sofrimento que um homem como Jack Burton deixará transparecer. Ele veio para Inglaterra porque tínhamos negócios a tratar, mas, no fundo, meu sócio atravessou um oceano inteiro na esperança de poder abraçar o filho.
— Eu sequer tive a oportunidade de vê-lo. Fui despachado ainda na porta pelo mordomo. Ingleses presunçosos! — prossegue ele, desviando o olhar, para evitar uma possível expressão de pena de minha parte. — Não fui surpreendido. Eu já sabia que seria assim. Desde o dia em que Amélia morreu e sua família levou Michael de mim eu tive a certeza que o havia perdido.
— Se você estava certo que seu filho desprezaria um pai americano que começou de baixo, por que se deu ao trabalho de procurá-lo?
Jack engole seco antes de responder:
— Porque ele é meu filho. Meu sangue. — Diz simplesmente, e logo atravessa a rua seguindo para nosso destino.
Após um ano juntos quase diariamente, sou capaz de perceber quando meu sócio dá um assunto por encerrado.
— Eu não gosto do rumo das coisas. — Resolvo mudar o tópico da conversa, retornando ao que discutíamos no café da manhã. — Este homem está disposto a investir uma quantia extravagante de dinheiro conosco e nem ao menos aceita nos conhecer.
— Você melhor do que ninguém sabe como são os ingleses, rapaz. — Ele dá duas batidas amigáveis no meu ombro e continua a explicar: — Esses hipócritas conseguem enxergar que o mundo está mudando, mas não dão o braço a torcer. Querem o dinheiro proveniente das novas indústrias, contudo não pretendem se relacionar com gente como nós. Faz parte do jogo. Por isso, estampe um sorriso condescendente no rosto e vamos arrancar o dinheiro que precisamos da mão de algum nobre preguiçoso e esbanjador.
Chegamos ao escritório do advogado na hora marcada. Ele fala pouco a respeito do cliente que representa. No entanto, nos informa que contaremos com a quantia que precisávamos para começar na construção de novas ferrovias. E isso é tudo o que Jack e eu queríamos ouvir. Não carecemos de um aperto de mão de um aristocrata esnobe. Só precisamos do dinheiro dele.
Saio da reunião me sentindo bem como não me sentia há tempos. Na América, qualquer homem — importante ou comum — tem a chance de ganhar dinheiro, basta ter uma determinação ferrenha. Mas este novo investimento é o que me levará mais longe do que qualquer homem de nascimento humilde jamais ousou ir.
Aproveito o restante do dia para comprar presentes para as minhas irmãs, uma vez que embarcaremos de volta à América no dia seguinte. Jack preferiu voltar para o hotel e começar a arrumar as malas. Como me explicou, ele não seria boa companhia hoje. A solidão é a coisa mais tentadora que existe quando somos feridos, então o deixo partir só. Acabo de sair de uma loja de perfumes, estou olhando a minha volta à procura de um cabriolé de aluguel. Meus olhos atentos percorrem todos os lados. Mas é o que avisto do outro lado da rua que rouba minha total atenção. A cena desenvolve-se rapidamente, no entanto, sinto como se cada movimento me prendesse em eternidade angustiante. Ele abre a porta da loja, e ela passa por ele e sorri. Ela sorri. Na calçada, os dois observam a suntuosa carruagem se aproximar. Ele, enquanto isso, sussurra algo bem próximo de seu ouvido. Ela ri do que ele diz e leva a mão até o ventre. Só então reparo a sua voluptuosa forma. Ele põe sua mão sobre a dela e juntos acariciam a redonda barriga. A carruagem se aproxima, dispensando a ajuda do cocheiro, ele mesmo a ajuda a subir no veículo. A carruagem vai embora.
Eu fico ali parado, desejando nunca ter visto o que vi. A forma como a boca dela se curvou facilmente em um sorriso. Excessivamente fácil. Ela parecia... feliz. Os mesmos lábios que me juraram amor, agora sorriem para outro. Ela levou embora meus sorrisos com suas mentiras, deixando-me insensível e vazio a qualquer boa emoção. Nem me lembro qual a sensação de sorrir.
Sou incapaz de identificar de que ponto do meu corpo vem a dor. Tudo parece doer. Até respirar é doloroso. Nesse momento eu faço um juramento: eu não serei o único a sentir dor.
Um dia, prometo a mim mesmo, eles receberão o devido castigo.

O retorno de Henrique HutlerOnde histórias criam vida. Descubra agora