Somos todos cacos

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Meu relacionamento com Scott é algo bem saudável. Ele ainda não sabe o que aconteceu entre papai e mamãe, mas já sente a diferença e sofre com isso. Todos nós sofremos.
Apesar de não ser avançado em idade ele é bem esperto e quando me pergunta o que houve... Bom, eu fico sem saber o que responder.
Eu costumava dizer que a vida de nossa família era como vidro, sempre tentávamos manter total transparência de forma que fosse possível ganhar a confiança das pessoas. Mas agora, como qualquer vidro, estamos estilhaçados, mais frágeis do que nunca e capazes de machucar qualquer um que tente se aproximar.
– Como foi lá na casa do Jeff, hein? – pergunto querendo saber se mamãe vacilou ou não.
– Foi bem legal! – Scott responde contente. – O tio Davis construiu uma casa na árvore para nós.
– "Tio Davis"? - pergunto incrédula.
– Isso. Bom, não é bem uma "casa na árvore", ela ainda está no chão - sua voz ganha uma tonalidade triste. - e acho que vai ficar por lá mesmo, Pê. O tio disse que pode ser perigoso.
– Pode ser mesmo. – confirmo enquanto me distancio dele. – Fique por aqui, eu volto já.
Ando apressadamente pela casa em busca de minha mãe.
– "Tio Davis"? – pergunto quando a vejo. Ela está pondo o almoço enquanto cantarola algo que mais parece uma canção de ninar.
– Fiquei tão surpresa quanto você. – responde.
– Papai sabe disso?
– Não e nem deve. Teremos de impedir que isso...
– Espera, espera. – interrompo-a – Você disse "teremos"? Tipo, você e eu?
– Exatamente. Nós.
– Seu cavalo está na chuva, né?
– Aam?
– Já passou da hora de tirá-lo.
Barulho de um celular tocando.
Retiro meu celular de um dos bolsos de minha calça e deparo-me com a notificação de que papai está ligando.
– E falando nele... – digo.
– Que? – mamãe se desespera – Olha lá o que você vai falar.

– Alô, papai!? – ouço o que ele está falando e tento não esbanjar nenhuma reação. Quero que mamãe tente imaginar o que ele está falando. – Sério? Poxa... – não consigo esconder a frustração em minha voz. Mamãe está fazendo gestos que demonstram indagação. Faço um outro pedindo silêncio. – Mais ou menos que horas? – agora mamãe está pondo dois dedos da mão direita no lado esquerdo de seu pescoço e os puxa até o outro. Começo a rir. – Aam? Nada. – mamãe está rindo também. – Certo, irei dizer. Tchau! Amo você também.
Desligo o telefonema.

– O que ele queria? – mamãe pergunta.
– Ele não vai vir agora.
– Mas...
– Vem para o jantar, mas não agora. Chatice!
Mamãe cruza os braços e vejo que está tentando entender o motivo de ele não vir almoçar com a gente.

15:47

Estou em meu quarto conversando por chamada de vídeo com Crislen quando ouço alguém me chamando.
– Quem é? – Cris pergunta.
– Parece ser meu irmão.
– Você disse que ele estava dormindo, não disse?
Scott me chama novamente, não grita e nem sussurra, mas percebo que ele está se esforçando para que não seja ouvido por mais ninguém.
– E estava.
– Aconteceu alguma coisa?
– Pode ser que sim. Bom, nos falamos depois? Vou ver o que houve.
– Sim, sim. Tchau.
– Tchau.

Levanto-me da cadeira em que estou sentada e vou em direção à porta. Abro-a e encontro Scott segurando seu travesseiro de Max Steel.

– O que houve, meu bem? – pergunto preocupada. – Teve um pesadelo?
– N-Não. Aam, posso ficar aqui com você, Pê?
– Claro. – falo agachando-me de forma que seja possível ficar quase de seu tamanho. Eu não sou muito alta, da última vez que me mediram eu estava com 1.66. – Mas você tem que contar o que aconteceu, tá okay?
– S-Sim.
– Ótimo! Venha.
Coloco-o para dentro e checo o corredor na esperança de não encontrar mamãe para fora de seu quarto.
– Amém! – digo aliviada.
Entro no quarto e tranco a porta. Scott já está sentado em minha cama esperando que eu me sente ao seu lado.
– Agora pode me contar o que houve?
– Quando você discute com a mamãe é... você... segura um braço dela?
– Como assim, Cott?
– Mamãe disse que quando os adultos brigam um deles segura um braço do outro.
– Ah, e você viu o papai segurar o da mamãe, é isso?
– Não e nem você, mas o tio Davis fez isso. Por isso não entendi.
Merda!
Não pode ser, ela falou com ele. Ele tentou agredi-la? Canalha! Mas ela deveria saber que coisa do tipo poderia acontecer, não posso acreditar que ele tenha feito algo.

– Pê? – Scott pergunta.
– Aam... é, eles... fazem quando... aam... algumas vezes... – não tenho noção do que falar. – O que mais você viu, hein?
– Nada, eu fui pegar meus brinquedos.
– Certo. Eu... eu estou com sede, você não?
– Tô "cum" fome.
– É... é isso, eu também. – levanto-me da cama e ando de costas até à porta. – E que tal você ficar aqui enquanto eu preparo um lanchinho?
– Eu topo! – responde sorridente.
– Beleza!

Do lado de fora do quarto posso sentir o total peso da raiva que antes tentava esconder de meu irmão. Vou em direção do quarto de minha mãe e bato bravamente na porta que, para minha infelicidade, está trancada.
– ABRA ESSA PORTA, KATHERINE! – chamo-a pelo nome sem ao menos perceber. A raiva já é maior dentro de mim.
Bato novamente.
– Tô indo, tô indo. – ela responde de dentro do quarto.
O que ela vai dizer agora? Mentir só irá piorar as coisas.
Ela mal abre a porta e eu já estou dentro do quarto também.
– O que você foi fazer na casa do Willians? – pergunto.
– Buscar seu irmão.
– PARA DE MENTIR, CARA! QUE SACO!
– O que Scott falou?
– Tá querendo saber para não falar algo que ele não disse?
– O que ele disse, Petrina? – ela pergunta querendo impor autoridade.
– Diga-me você.
– Nós discutimos, foi isso. – fala pondo a mão esquerda na testa como sinal de decepção.
– Por quê?
Silêncio.
– EU PERGUNTEI POR...
– Ele queria que eu ficasse com ele, queria que eu... – ela se perde em lágrimas. – Eu não posso, não posso. Não é o que eu quero.
– O que você disse?
– Disse que não. Não posso fazer isso, não agora.
– Mas depois sim? – pergunto isso, mas me arrependo. Isso é cruel demais.
– Não, claro que não. Estamos melhorando, não quero piorar as coisas.
– Okay.
– Desculpa... – ela me olha com os olhos cheios de lágrimas – Eu queria que nada disso tivesse acontecido. D-Desculpa.
– Tudo bem. – é tudo que consigo dizer.
– Desculpa.
– Certo.
Saio rapidamente de seu quarto e desço para preparar algo para Scott.

O calor da neveOnde histórias criam vida. Descubra agora