Prólogo

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A família quase perfeita tinha mais uma noite gélida de jantar. Em um silêncio sepulcral e cotidiano, pai, mãe e filho entretinham-se com uma refeição farta de carnes e massas, feita pelo único vassalo da Casa.

O atrito dos talheres contra a porcelana chinesa era o único ruído ecoando pela sala de jantar, até que o filho único do casal resolveu quebrá-lo:

— Quando vou poder conhecê-la? — Ele questionou, ansioso.

A única coisa que diminuía o nervosismo do adolescente para o que enfrentaria ainda naquela noite, era a vaga promessa de que assim que fizesse o que tinha sido instruído a vida toda, ele a conheceria. Aquela sobre quem ele tinha crescido ouvindo histórias, sobre as coisas que fariam juntos, sobre como eles eram especiais e únicos, sobre como tinham nascido predestinados a algo grandioso e irreversível. Mesmo que nunca tivesse-lhe sido permitido vê-la pessoalmente ele esperava que não fossem apenas feitos do mesmo material, porque apesar de toda a criação que tivera, tinha essa esperança dentro dele de que poderia ser melhor com ela.

— Quando eu disser que está pronto. — Seu pai o respondeu, com o timbre firme e impassível característico de sempre, mas sequer o olhou.

O garoto assentiu em falsa concordância, embrenhando seus dedos entre seus fios avermelhados com impaciência. Odiava esperar. E odiava muito, porque esperar era única coisa que tinha feito nos últimos dezoito anos. Esperar o dia em que finalmente seria útil a família. Família; o garoto imaginava se a palavra tinha um gosto tão amargo e contraditório na boca de qualquer outra pessoa que não ele. Mas não adiantava contestar. Para o bem ou para o mal, a mulher de cabelos vermelhos vívidos e o homem de olhos azuis tão claros e gélidos o tinham criado e ele deveria ser grato.

E também tinha as cicatrizes em suas costas; cortes assimétricos que marcavam todo seu tronco, graças as armas infernais. Algumas ainda recentes sobrepunham outras esbranquiçadas pelo tempo, em um lembrete constante do quanto seu pai poderia ser cruel caso ele desobedecesse.

— Alguém quer mais vinho? — Sua mãe ofereceu, aparentemente mais interessada em qualquer outra coisa que não ele e seu pai. E quando ninguém respondeu ela apenas deu de ombros e balançou a cabeleira vermelha, servindo a si mesma numa animação que o garoto sabia ser falsa.

O cômodo ocupado pela família era composto por uma mesa de carvalho retangular abarrotada de uma grande variedade de alimentos e uma iluminação de chamas amareladas vinha dos candelabros ornamentados dispostos assimetricamente pelo espaço, enquanto as paredes de tons escuros eram cobertas por molduras requintadas retratando pinturas bíblicas contraditórias e um relógio rústico com seu ponteiro próximo à meia-noite.

Meia-noite.

O garoto suspirou com a aproximação do evento que mudaria sua existência, usando todo seu autocontrole para impedir a si mesmo de demonstrar qualquer temor. Seu pai não aceitava menos do que a perfeição, afinal, ele não era apenas um filho. Ele era uma arma. Uma arma forjada e lapidada vagarosamente ao longo de quase duas décadas.

Quase duas décadas treinando incessantemente para ser o melhor. Matando e torturando criaturas sem um pingo de humanidade; bestas cruéis com o único propósito de servir ao seu progenitor. Quase duas décadas estudando os fundamentos do Universo e cada criatura nele existente, além de dominar línguas há muito esquecidas, e claro, a contemporaneidade. Quase duas décadas apanhando todas as vezes em que falhava, todas as vezes em que mostrava um pingo de misericórdia por qualquer que fosse a missão a ele incumbida; ele ainda se lembrava do dia em que por milésimos de segundos tinha hesitado em finalizar sua missão.

Criaturas Celestiais - A Queda  [Pausada]Onde histórias criam vida. Descubra agora