Nós

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*Vitória*

- Tá, então me ajuda. Presta bem atenção e vê se tu entende sem eu ter que desenhar teus cachos no canto da folha.

Senti meu rosto esquentar no segundo em que Ana Clara disse essas palavras, acho que pela primeira vez me senti mais envergonhada que ela com qualquer coisa que houvesse nesse mundo. Quando ela começou a tocar e cantar, a letra me deixou sem chão, sem ar, sem qualquer raciocínio lógico. Só tinha Ana Clara, olhando o violão como se estivesse em público, engolindo a vergonha e sorrindo disfarçado em trechos tão nossos. Eu já estava ali, sabendo o ritmo que parecia fazer parte de mim e quando percebi que a canção voltava ao ritmo inicial comecei a cantar.

Meu jeito rima com o teu
O tom de noite da tua pele me contrasta
Teu toque até me aprendeu
Em ti fiz minha casa

Essa música não tem onde demarcar a parte de cada uma de nós, não precisa. Minha parte veio nítida, transparente. Ela sorriu simples, boba, infantil, envergonhada. Assim que acabamos de cantar, mais ela do que eu, que estava ali apenas acompanhando o ritmo que ela dava a canção percebi que minhas mãos tocaram as dela em cima do violão, quase instintivamente. Eu queria que ela soubesse que meu coração parou por instantes com a piadinha dela, com a letra, com o sorriso tímido, com o cheiro, com ela. Explodi em carinhos que não consegui conter, comecei a beijá-la de forma carinhosa em toda a cabeça, espalhando beijinhos em sua testa e rosto como fazia sempre que nosso amor transbordava de nós.

- Meu deus, Ninha, cada vez mais me surpreendo com essa tua lindeza todinha de dentro que transborda quando tudo escreve!! – Falei com um nítido tom de excitação.

- Só de dentro, Vitória? Por fora eu sou um dragão né? – Ana disse fingindo-se de ofendida e mordeu o próprio lábio inferior.

- Eu não disse isso – Respondi sorrindo e fazendo uma negativa com a cabeça.

- E aí, musa inspiradora do duo, que tu achou? – Ela disse rindo, depois de nos encararmos em silêncio por uns instantes.

Por que ela faz essas coisas? E, pior, por que eu não consigo ficar imune à elas? Ela me olhava como quem esperava uma resposta e eu tinha me perdido a encarando.

- Ixi, ficou ruim assim? – Ela continuava a me olhar e eu só repetia mentalmente que beijá-la não era uma opção, que ela amava a Letícia e eu conhecia o final desse filme.

- N...não, Ninha. Tá lindo. – Foi o que consegui dizer, entre gaguejos baixos.

Ela, obviamente percebeu meu nervosismo, ai Vitória que burra você é, você sabe o que a Ana vai fazer agora. Não que ela faça por mal, mas ela mistura as coisas e sai derrubando pedaços espalhados do teu coração por aí. Tu precisa da certeza do hoje, dos afagos despropositados, da leveza. Ana nunca vai saber te dar isso em um relacionamento passional e tu sabe que ela não pode, mesmo que ela tente, a Ana precisa do amanhã, do depois, do ciúme, de um bando de coisas que tu não pode dar. Ana precisa da roda gigante que a Letícia é e dos joguinhos que elas faziam para se sentir viva, tu nem sabe jogar esse jogo.

Quando voltei a mim, os olhinhos castanhos e caídos já estavam me encarando de perto demais.

- Terra chamando? – Ela sorriu e me fez cair na gargalhada.

Talvez ninguém no mundo entenda como eu posso amar, desejar e temer tanto a Ana, tudo ao mesmo tempo. Lhe dei um tapinha no braço e ela começou a acariciar meu braço, estávamos de pernas de chinês no chão, de frente uma para a outra desde que entrei no quarto. Ela tirou o violão de cima de sua perna o apoiando do lado, aproximou seu corpo do meu, fazendo nossos joelhos se tocarem.

Marte e GirassóisOnde histórias criam vida. Descubra agora