02 - Bem Mais Embaixo

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Então, voltando aqui depois de um pequeno período de tempo. Há mais de uma semana sai com Cyob e Krutnar para encontrar Lunia e Luan a pedidos do Sr. Smith. Partimos da região baixa de Pico do Mar, uma cidade bem desenvolvida e que é a capital do reino.

Durante esses dias com esses caras pouco pude perceber de personalidade deles. O primeiro, o Cyob é bem caladão mas sempre quer ajudar quando é solicitado. Houve momentos que ele acabou dando mais que podia para uma família que passou por nós, porque eles haviam sido saqueado. O Krutnar não gostou tanto, eles até chegaram a se desentender um pouco, mas o clima retornou ao amigável após a discussão. A cor da pele do Cyob parece ser um estigma que ele tem que levar, assim como suas orelhas pontudas, já que até a família que ele ajudou, no início, eram receosas com a mão amiga que havia sido estendida.

O Krutnar é o cara que faz as mais gostosas comidas, ele prefere, assim como eu, deixar as coisas acontecerem, sem se envolver muito. Algumas vezes pode até parecer um pouco desleixado, fato que vi quando Cyob pediu para ele ficar de guarda e o Krutnar simplesmente adormeceu, o que fez os dois, mais uma vez trocarem farpas. Acho que a amizade deles já deve estar num nível que as brigas representam muito mais amor que tempos de bonança em silêncio.

Mas sim, além dessas observações na personalidade deles, essa primeira semana foi bem movimentada. Conseguimos carona com um senhor chamado Hastigar, um humano que faz o comércio de especiarias entre o Pico do Mar e a cidade Vento do Oeste, ao norte do reino. Ele é bem gentil e nos presenteou com vários temperos, deixando o cozido de Krutnar ainda melhor.

Seguimos com Hastigar pelo caminho do comércio até o Estreito de Acman, uma região montanhosa que apresenta dois picos bem desenhados entre os montes, onde cada uma lembra muito o "morro Bom Jesus" da minha cidade natal, exuberante e com arquitetura única frente ao que está em seu redor.

Em Acman nos separamos, já que o caminho que Hastigar pretendia tomar era outro, para o seu comércio. Achei estranho a despedida dele com o Krutnar, que disse que apenas havia conversado sobre os temperos, mas quando ele retornou, sua expressão era de incredulidade e estava um pouco pálido. Fato que deixamos passar porque, assim que começamos a conversar sobre a situação dele fomos acometidos por uma forte chuva de vento (muito comum nesse mês em que estamos - Ventyos) e tivemos que correr para nós abrigar em uma caverna sob os picos do morro.

A chuva durou alguns minutos e isso foi o suficiente para percebermos que não estávamos sós. Vozes e cantorias eram ouvidos próximos de onde estávamos. Foi o primeiro momento que temi pela nossa segurança. Os cantos eram de criaturas com vozes ameaçadoras, trazendo ideias de mortes e saques como algo feliz e que eles desejavam muito realizar.

Percebemos que estavam a alguns metros de distância, em outro buraco usado como caverna para se esconder da chuva. Eles haviam feito uma fogueira e estavam assando algo para comer, já que o cheio de assado pairava pelo ar. Cyob se esgueirou um pouco pelas pedras e trouxe a informação que se tratavam de dois brutamontes com aspectos de bichos selvagens, grandes chifres na boca e uma cara verde amassada, parecido com um cachorro Pug. Cyob falou que eles tinham grandes machados de guerra encostados na parede da caverna e pareciam saber usar bem aqueles instrumentos.

Foi aí que o coração disparou. Pensei que a espada que Sr. Smith havia me dado jamais seria usada, mas acabou que depois desse nosso encontro um sangue verde pingava dela, me deixando estatelado sob o chão enlameado e um corpo de mais de 120 kg sob mim. Nunca eu havia brandindo uma espada e, menos ainda, pensado em matar algum ser com ela. Mas quando meus colegas se preparavam para o ataque, percebi que seria de maior ajuda se os acompanhasse que ficasse gerando desculpas para não participar (mesmo achando que seria somente um peso morto no combate).

Porém esse não foi o ponto que venho aqui relatar, já que finalmente tivemos um tempo para parar. Duas coisas foram destaque nessa abordagem a estes seres, que os dois chamam de Orcs. Primeiro, eles carregavam um bilhete em uma escrita estranha, pude perceber pelas linhas e o formato que era uma língua bruta, imatura, que Cyob identificou como sendo característica dos Orcs. Ele conseguiu identificar os símbolos (quatro, oração, humano, um) mas o entendimento do que eles representavam ainda estava longe de chegar. Junto ao bilhete com esses símbolos estranhos estava um mapa de uma região de lado, que Krutnar informou ser perto de onde estavam, e um x no lado oposto desse lago.

Mas esse não foi o mais esquisito e que merece registro, e sim o que aconteceu logo após a morte dos Orcs. Durante a batalha eu vi como Cyob e Krutnar são ótimos para estarem do meu lado. Ardilosos combatentes, com uma sincronia ímpar entre eles, parecem um exército quando entram em combate. Porém houve um momento em que Krutnar ficou desatento e um dos Orcs conseguiu o ferir nas costas, momento esse que tomei coragem e cravei a minha espada no alto de sua cabeça, o fazendo cair sobre mim. Quando Cyob acabou com o outro e me tirou debaixo do brutamontes, Krutnar já havia perdido muito sangue e havia desmaiado. Cyob rapidamente pegou algumas plantas em sua mochila e colocou sobre a pele. Pareciam que possuíam algo como iodo, porque a pele toda ganhou uma coloração alaranjada e o sangue começou a estancar, mas isso não pareceu suficiente para o sangramento cessar totalmente. Ele pediu então que eu ficasse com a mão sobre o sangramento enquanto iria procurar por algo que o ajudasse, saindo da minha vista.

Mesmo eu não conhecendo bem os dois, eu  já havia me afeiçoado a eles e não queria perder nenhum dos meus amigos. Lágrimas começaram a escorrer pelo meu rosto e, não consigo entender como, isso foi o gatilho para que minhas mãos, sobre o corpo de Krutnar começassem a brilhar. Senti como um calor imenso me banhando e sento transferido do meu interior para as mãos e passado a Krutnar. Senti sua dor, gemi de agonia pela situação mas percebi que a dor que ele carregava era pouco comparada com a dor de o perder. Minhas mãos se tor mais quentes e o ar ganhava mais densidade, até que tudo cessou e, para meu espanto, somente  a cor e o sangue que já haviam saído do corpo dele restavam. A cicatriz não existia, assim como nem mais uma gota de sangue era liberado. Me espantei, fiquei um pouco perplexo, mas nada foi mais estranho que a cara de Cyob ao retornar com algumas ervas e vê Krutnar já se levantando sem nenhum resquícios que estava sangrando até a morte. Preferi não falar nada que fiz, mas a desconfiança caiu sobre mim, o que acho que não seja uma coisa boa.

Agora os dois passam mais tempo de conversa e cochichos, e eu fico ainda mais isolado que antes. Será que causei mais mal do que bem? Na realidade, o que será que acabei causando. Não senti mais nada de estranho comigo depois disso, só um ligeiro cansaço, mas a desconfiança dos meus colegas é o que me deixa ainda mais inseguro de como será essa missão de salvamento. Será que no final, serei eu que terei que ser salvo, afinal?

Os dois estão descansando e cá estou eu, em guarda, de vigia... Eu,

Liam, o indesejado (já não é uma alcunha que acho tão interessante de carregar).

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