Bola de neve

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POV Clara

Acordei na terça-feira com a minha mãe gritando algumas palavras nada agradáveis pro meu pai. Minha família era o contrário de perfeita. Pais que brigam mais do que conversam, irmão mimado e intrometido, e a ovelha negra da família, vulgo eu. Continuei deitada fingindo que estava dormindo, não queria enfrentar o monstro agora, então resolvi esperar tudo se acalmar.

O final de semana não teve nada de inovador, apenas séries, livros, filmes. Normal de adolescentes, coisa de que eu não me orgulho.

Passei o dia vendo série e mexendo no celular, típica tarde tediosa. Punhal é uma daquelas cidades pequenas onde não tem nada pra se fazer, e a única opção de "rolê" é ir pra praça sentar em baixo de sol quente e não fazer nada do mesmo jeito, só que dessa vez na rua. Prefiro ficar em casa. Sinceramente, não vejo a hora de me formar e ir embora daqui, mas mesmo não gostando da cidade, tem tantas coisas que não quero deixar. Meus amigos, meus cachorros, e agora, Catarina.

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- Clara, você vai se atrasar!
- Mãe, eu já to saindo, ainda são 19:10, a aula começa 19:30 - Digo colocando o sapato correndo nos pés.
- Edgar, não é pra levar a Clara de carro! Ela passou a tarde toda em casa e ainda consegue se atrasar.
- Se ele quiser me levar ele me leva, pelo amor mãe, você só sabe implicar.
- Vamos ver se ele vai te levar então.

Olho para o meu pai e ele rapidamente olha pro lado fingindo que não viu. Meu pai é um pau mandado da minha mãe, mesmo eles brigando todos os dias, ele ainda faz tudo que ela manda. Pego minha mochila e bato a porta com força. Ah, o amor em família...

Enquanto ando pela rua, vejo um carro se aproximar de mim. Meu coração começa a acelerar por medo de ser alguém querendo me fazer mal. Não que a cidade seja perigosa, mas é difícil ser mulher numa sociedade patriarcal machista. Acelero os passos, mas o carro para ao meu lado e abre o vidro.

- Clara, quer carona?

Olho para dentro do carro, e vejo a melhor imagem do meu dia.

- Catarina! Hum, oi! - Fico totalmente desconcertada, e não sei o que dizer.
- Oi - Ela sorri pra mim, e eu sinto como se eu fosse derreter - E aí, aceita a carona?
- Claro!
- Então entra aí.

Ando em volta do carro até chegar na porta do passageiro. Entro e me viro pra colocar o cinto, mas sou interrompida por ela.

- Não precisa colocar o cinto não boba, a escola é pertinho.
- Ah, tá bom...

Coloco a mochila no chão e encosto no banco. "Eu to dentro do carro dela, meu Deus".

- E aí, como você tá?
- Eu to bem, e você?
- To bem também. Você mora aqui perto? Nunca tinha visto você passar por aqui, a gente pode combinar de eu sempre te dar carona.
- É, geralmente eu vou por outro caminho, mas hoje eu não tô tão atrasada, então vim por aqui mesmo, é mais seguro.
- Ah sim, mas eu ainda posso te dar carona quando te ver.
- Pode sim, e eu agradeço demais - Dou risada.

Seria uma ótima forma de me aproximar mais dela se ela sempre me desse carona. Mesmo que o caminho seja pequeno, é um avanço. Depois de uns 5 minutos ela estaciona em frente à escola, e eu pego a mochila pra sair do carro.

- Clara, quero conversar com você.

"Caralho".

- Pode falar - Coloco a mochila no chão do carro novamente.
- É que eu percebi que você tem andado meio tristinha ultimamente - Enquanto ela fala, coloca a mão na minha coxa e aperta levemente, movimentando o dedão para um lado e para o outro - Tô preocupada com você...

Sorrio sem mostrar os dentes, como quem não quer falar. Ela continua com a mão na minha perna e indaga.

- O que foi?
- Ah Catarina, tô com muita coisa na cabeça sabe?
- Tipo?
- Se eu começar a falar, vou chorar.

Dou uma risada abafada pra tentar disfarçar, mas ela insiste no assunto.

- Pode falar pra mim.
- Ah, é que tipo... É muito problema sabe? Tô sobrecarregada.

Ela continua me olhando, na espera de que eu fale mais. Eu não gosto de compartilhar meus problemas, todo mundo já tem sua própria cruz pra carregar, e falar sobre a minha só vai deixar a do próximo mais pesada. Mas o olhar dela... É como se me reconfortasse, trouxesse paz. Talvez não seja tão ruim compartilhar isso com ela.

- É como se fosse uma bola de neve, vai aumentando a cada dia, e ta me engolindo. - Meus olhos começaram a encher de lágrimas, e minha voz começou a embargar - Faz uns anos que eu fui diagnosticada com depressão, e eu pensei que tinha melhorado, mas de uns tempos pra cá parece que piorou sabe? Sempre consegui disfarçar isso, mas ultimamente não tá dando.
- Oh meu bem - Ela tira a mão da minha perna e coloca no meu ombro - Eu também já tive depressão, mas eu aprendi a subir em cima da bola de neve, não deixar ela me engolir. Sei que falar que vai ficar tudo bem não vai te ajudar, mas sempre que você precisar, é só você procurar aqui.

Ela sorri novamente pra mim, e eu sinto uma descarga elétrica em todo o meu corpo. Essa mulher é mágica, faz tudo ao meu redor desaparecer, e me passa uma energia tão boa... Ela me puxa e me entrelaça nos braços, no abraço mais reconfortante da minha vida. E foi ali que eu desabei. Com ela me abraçando fortemente, e eu com a cabeça no pescoço dela, comecei a chorar.

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