A busca - II

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A garotinha subia a estradinha de terra, orlada por uma densa floresta, saltitando feliz. Seus cabelos trançados balançando sobre os ombros, seus olhos castanhos inocentes sem consciência do futuro e seu nariz empinado. O capuz vermelho que sua mãe costurara para seu aniversário de doze anos ia abaixado, pois o céu estava nublado e não havia vento. Trazia uma cesta de palha firme no antebraço, contendo as combinações de ervas e a criação de sanguessugas, que supostamente tirariam a doença da sua vó.

Nesse momento algo pesado que passou pelas árvores a fez estacar, o sorriso espontâneo evaporou com o medo que fervia em seu peito. Seus pequenos olhos esperaram qualquer movimento novo, escondido pelas sombras. Depois de alguns segundos abraçada à cesta, resolveu que poderia ser uma raposa, embora o peso abafado pelas folhas indicasse algo bem maior.

Quando sua casa surgiu no fim da estradinha, sentiu começar o penoso formigamento no abdômen, alertando-a de que algo não estava certo. Chegando no limite do terreno, delimitado simbolicamente por uma cerca de madeira, que não impedia a passagem de ninguém, percebeu a porta derrubada e seu coração parou por um milésimo. Ainda assim, contrariando o estresse que oprimia seus músculos, a menina colocou pé ante pé, visando entrar em casa e descobrir o motivo das ondas de calafrios que sentia. Entrando, vislumbrou uma cena que não compreendeu de imediato.

O interior da casa estava escuro, mas era possível divisar as formas de uma criatura ainda mais negra do que as trevas. Algo peludo, que arfava encurvado sobre uma massa disforme no chão, circulada por um líquido viscoso que refletia a escassa luz vinda da porta aberta.

― Mãe? ― Capuz gemeu maquinalmente, inconsciente do risco que corria, tomada pelo desespero infernal em que agora jazia. Se pudesse, taparia a boca da menina inocente, sufocava seus gritos com os braços agora tão fortes e a levaria para longe, onde aquelas garras não pudessem alcançá-las e impedir aquela cicatriz sinistra que todos os dias a lembrava de sua motivação maior na vida.

Porém não podia fazê-lo, era apenas uma observadora imaterial, assistindo à cena bizarramente de cima, como pelos olhos de outro. Cena que se distorcia, afastada pela tempestade de trauma, pois se aproximava o derradeiro momento. A criatura se ergueu em seus portentosos dois metros de altura, mesmo que ainda arqueado. Os olhos vermelhos, as orelhas pontudas, os dentes enormes a escorrer saliva e sangue, as garras que se esticaram para a luz derrubando a Capuz criança. A cesta e seu impacto surdo, o calor do sangue molhando seu rosto, saindo de quatro profundos cortes que a marcariam para sempre, tudo isso ficou gravado na mente da garota. Sua visão ia embaçando, até a chegada de um homem, que disfarçou o choque em vislumbrar aquela cena e apanhou a garota nos seus braços fortes, guiando-a através da escuridão.

A capuz adulta acordou enxergando o sol já alto que entrava em um filete através dos espaços na palha do telhado da casinha humilde de Jones. Há bem uns sete anos não sonhava com aquela triste lembrança, entendeu como resultado da proximidade de sua vingança e se levantou. Chegou na vila dos pescadores com o sol, reuniu-os enquanto se arrumavam para trabalhar e explicou que uma criatura assassina poderia ter o lugar como alvo. Foi difícil convencê-los, mesmo que houvesse conhecedores dos ataques às outras vilas. Mas ao mostrar as cicatrizes no rosto e explicar que faria tudo sozinha, alguns se ofereceram para ajudá-la. Ela e mais oito pescadores montaram três armadilhas de laço e duas de rede, que estavam agora cercando as saídas da vila para a floresta.

Capuz duvidava que aquilo pudesse ajudar, pois aquela espécie de monstro humanoide parecia inteligente. No entanto estava exausta e pediu um lugar para cochilar, esperando que a criatura só aparecesse à noite. Vários entre eles ofereceram suas casas, mas Capuz preferiu Jones, que era um dos poucos solteiros no grupo. Ela mostrou a sua espada para ele, explicando o que aconteceria se ele tentasse algo, o homem de cabelos assanhados e meio desdentado sorriu, afirmando que só queria ajudar. A mulher duvidava disso, quando mostrou suas cicatrizes que deformaram seu rosto, os homens se apressaram a afirmar que ela ainda era bonita. Sabia disso, tinha a sorte de ainda ter todos os dentes, mesmo nunca tendo lhes dispensado muita atenção, seus cabelos eram sedosos, seu rosto tinha proporções perfeitas e jamais fora atacado por doenças que deixassem marcas, havia apenas os sulcos agora bem menores do que foram na sua adolescência.

Saindo da cabana em torno de dez horas, Capuz começou uma ronda nos arredores da vila, por vezes sentindo os olhares desconfiados dos trabalhadores em suas costas. Passou o dia assim, por vezes apanhando um figo das figueiras que cresciam nas proximidades. Ao fim da tarde, enquanto o sol se aproximava do horizonte, pintando o céu com poucas nuvens de um laranja morno, os pescadores vieram até a árvore em que ela estava sentada e avisaram que iam assar alguns peixes pro jantar, num convite indireto. Capuz aceitou, a dieta de frutas fazia sua barriga roncar.

O grupo comeu tranquilo enquanto escurecia, ao redor da fogueira os homens contavam piadas idiotas das quais Capuz simplesmente não conseguia rir. Em certo momento Yael, o mais novo, começou a contar uma experiência sexual, até olhar Capuz e se lembrar de que havia uma mulher entre eles, então mudou abruptamente de assunto, fazendo todos gargalharem e dessa vez a mulher se deixou levar. O sol sumiu, a noite fria com o cheiro salgado do mar e dos peixes assomou e os pescadores começaram a falar em se recolher para descansar, mas não sem que dois deles perguntassem se não estaria mais confortável em outra cabana. Capuz tentava enxergar aquilo de forma cômica, pois se levasse a sério arrancaria alguns pintos antes de ir embora.

Sozinha, cutucando as brasas do que fora uma enorme fogueira, a mulher começava a perder as esperanças, tentou refazer a imagem do mapa que examinara com o xerife, imaginando se haveria outra cidade nas redondezas que pudesse servir de alvo para a criatura. Foi então que um barulho entre as árvores rompeu o silêncio morfético. Capuz se pôs de pé em um salto, bebeu rapidamente o líquido de um frasco que puxara de uma bolsa presa abaixo do peito, bateu o pano da capa para longe e pôs a mão direita no punho da espada com o pomo e o guarda-mão ilustrados com um sol. Era ele, tinha de ser, estava à espreita e provavelmente já a teria visto. Por baixo da sua capa, sob a luz fraca da lua nova, apenas seus dentes eram visíveis e mostravam um sorriso maníaco, os caninos aparentemente mais pontudos e os olhos refletindo uma sagacidade psicótica.

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