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""As coisas não eram fáceis lá na Rússia... Mas e daí. Aqui na América também nunca fora fácil. Sei lá, acho que sempre fui assim azarado""

Já é noite. A motocicleta silênciou seu motor debaixo de uma ponte semi destruída, o condutor salta da mesma e se dirige para a entrada da cidade.
As ruas encontram-se entupidas de veículos abandonados; sem condutores para guia-los.
  O homem avança pelas ruas desertas até chegar a um beco onde dois mendigos estão se aquecendo numa fogueira acesa num tambor de lata.
Com uma seringa na mão, prestes a espetar na veia de um dos braços, um dos mendigos faz o convite: 
- Vai um trago aí, filhão? - Oferece um dos mendigos. Um cara magrelo de cabelos embolados e dentes podres num sorriso amostrado.
O outro, um negro careca. Gordo, olhos pequenos e juntos, percebe a arma na cintura do forasteiro.
- Ei, camarada! - Grita ele para o forasteiro. O visitante vira-se para encarar os mendigos. - Isso aí é muito pouco para entrar nesse vespeiro. - logo em seguida solta uma gargalhada cheia de baba.
- Se afaste daqui, filho! Ou Soldier irá arrancar sua cabeça e por numa estaca! -disse o mendigo magricela.
O forasteiro não da ouvidos aos viciados e avança pelo beco. Um forte fedor de fezes e urina impreguinam o ar.
Ele cruza o beco de fora a fora para se depara com uma cena que faz seu estômago se embrulhar e o faz querer vomitar.
O final do beco da de fronte para uma praça com apartamentos em sua volta. Na praça ele presencia mulheres sendo estupradas: gritando e chorando, apavoradas ao ar livre.
- FODE ELA POR TRÁS! - Ele escuta um dos canalhas berrando na praça. - VAI CARA! FODE O RABO DESSA CADELA QUE EU FODO A BOCETA! - Volta a gritar o canalha.
Há também homens bebendo e se drogando, e outros simplesmente torturando alguns pobres desavisados que entraram aonde não deviam... ou simplesmente já moravam ali, quem sabe.
O forasteiro agora luta para permanecer em pé. Já conseguiu vencer a ânsia de vômito e as lágrimas que tentaram correr pelos seus olhos. Ele sabe que permanecer nas sombras e quieto significa se manter vivo.
O forasteiro já havia presenciado as condições das cidades sitiadas antes, porém essa em questão lhe atormentou o juízo, uma verdadeira heresia do mundo moderno.
Agora o homem vai se esgueirando pelas sombras e ganhando terreno... Seu objetivo no momento? Sair daquela praça o quanto antes possível.
Enfim ele consegue atingir o outro lado da praça e se enfia em outro beco que o leva para outros condomínios. Estes em questão parecem estar desabrigados e ele decide se aventurar atrás de suprimentos. O que desde o início era seu objetivo principal.

°°°

O dia amanhece acompanhado de uma chuva forte e extremamente gelada. Não  parece ter temperatura de uma chuva comum. Aquela água seria capaz de congelar uma pessoa, se arriscasse a tomar um banho matinal sem dúvida acabaria congelado. Mas nossas tendas resistem bem a chuva, que para de repente sem nenhum aviso. No próximo minuto o ronco de um motor possante acaba sendo nosso despertador.
- É o Leon. - Constata Edoardo com seu já reconhecido sotaque.
O motociclista manobra o terreno irregular com extrema perícia. Ele  estaciona perto dos carros e vem ao nosso encontro. Realmente era Leon, são e salvo, graças a Deus.
Leon relata para todos nós o que ele presenciou na cidade sitiada ao sul. De onde ele acabara de retornar a salvo.
Porém não tão simples assim foi deixar a tal cidade como vocês possam estar pensando.
Ele nos contou que logo depois de saquear tudo que encontrou de necessário nos apartamentos, descera para a rua. Foi então surpreendido por dois homens. Um era forte, alto de pele clara e cabelos raspados. Já o outro, um  sujeito moreno de cabelo crespo, era magro como um grilo pau. Leon contou  também que de onde estava dava para ver a ponte onde deixara sua motocicleta. "Quando olhei por sobre o ombro do magrelo vi meu bebê" ,disse Leon.

°°°

- Aí, maluco, nunca te vi aqui. Você é recruta novo? - Perguntou o magricela ao se deparar com Leon no meio da noite.
- É isso aí. O Soldier me recrutou. - Disse Leon se lembrando dos viciados do beco.
- Ah, o Soldier. - Falou o careca com um sorriso malicioso na boca.
O magricela tomou a frente do careca, meteu a mão no peito de Leon, bloqueando seu caminho.
- Calma aí! O Soldier não recruta ninguém. - Disse o magricela.
- Deixa esse babaca passar, cara - falou o homem careca. - O Soldier me prometeu uma garota nova. E eu tô louco pra da umazinha.
- Tá bom - disse o magricela. - Eu deixo ele ir. E depois falo pro Soldier que foi você quem deixou um estranho passar por nós sem ser interrogado.
O careca baixou a cabeça e encolheu os ombros. "Tem que ser agora."
Leon não esperou mais nenhuma reação. Lançou um belo cruzado de direita no meio da cara do magricela que se estatelou no chão apagado.
- Seu bosta! - Praguejou o homem careca.
Mas antes que sacasse da arma, Leon foi mais rápido e com um único disparo acertou o rosto do careca bem abaixo do olho esquerdo. O projétil disparado por Leon rompeu da nuca do careca, trazendo consigo sangue e tecidos cerebrais que se espalharam pelo chão.
O tiro ecoou por todos os lados, como um alarme para os chacais. Leon não esperou nova investida e correu o mais depressa que pode até o final da rua. Saltou um pequeno cercado onde tinha um brejo. Lutou contra a lama e o mato que cobriam o terreno. Lançou as mochilas que carregava com os mantimentos para o outro lado, passou por uma abertura da cerca e rasgou o lado direito da sua jaqueta no arame farpado. Desceu um barranco enlameado - escorregou na metade é bem verdade, mas chegou até a ponte onde deixara a motocicleta. Deu partida, derrapou no pneu traseiro desenhando um arco negro no chão e disparou estrada a fora. Nem se deu ao luxo de olhar para traz, estava vivo e com duas mochilas de 20 kg cada. Cheias até a boca.

°°°
Todos ficamos assustados com os relatos de Leon, mas ao mesmo tempo felizes por ele ter voltado com vida.
- Mas será que eles não te seguiram? - Perguntou meu pai.
- Eu peguei outro caminho para voltar pra cá. Tenho certeza que não me seguiram. Respondeu Leon.
Nesse momento Lince saiu de uma das tendas e veio de encontro a Leon e lhe abraçou forte a cintura.
- Oi, pequenina. -Disse Leon, pegando Lince no colo.
Tudo acabou bem com a excursão de Leon a cidade sitiada. Agora só precisávamos resolver a falta de água que nos aflingia.

Os Diários de Charlie FordyOnde histórias criam vida. Descubra agora