CAPÍTULO QUINZE

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AINDA ESTAVA ESCURO LÁ FORA QUANDO ABRI OS OLHOS.

O ar-condicionado soprava pelas saídas, batendo a pequena árvore amarela de cartolina pendurada no retrovisor. Sua fragrância de baunilha era enjoativamente doce e tão arrebatadora que revirou meu estômago vazio. Mick Jagger cantava próximo ao meu ouvido, sobre guerra e paz e abrigo — esse tipo de mentira. Tentei desviar meu rosto de onde quer que a música estivesse escapando, mas só consegui bater o nariz contra a janela e distender o pescoço.

Sentei-me direito e quase me enforquei com o cinto de segurança cinza.

Não estávamos mais no jipe.

A noite voltou como uma respiração profunda, completa e poderosa, tudo de uma vez. O brilho do painel verde iluminava o avental que eu usava, e isso era o suficiente para encher minha mente com a realidade do que acontecera.

Manchas de árvores e vegetação rasteira ladeavam uma estrada que estava escura por completo, salvo pelos pequenos e fracos faróis amarelos do carro. Pela primeira vez em anos, pude ver as estrelas que as monstruosas luzes de Thurmond haviam feito sumir. Elas eram tão brilhantes, tão claras, que não podiam ser reais. Eu não sabia o que era mais chocante — a infindável extensão de estrada ou o céu. Lágrimas formigavam meus olhos.

— Não se esqueça de respirar, Isaac — disse a voz ao meu lado.

Abaixei a máscara cirúrgica da minha boca enquanto olhava para cima. O cabelo louro da dra. Begbie estava circundando seu rosto, varrendo seus ombros. No tempo que levamos para sair de Thurmond para... onde quer que estivéssemos, ela despira o avental e vestira camiseta e jeans. A noite manchava a pele sob seus olhos como machucados. Eu não havia notado os ângulos agudos que compunham seu nariz e queixo.

— Você não entra num carro há muito tempo, hein? — ela riu, mas estava certa. Eu prestava mais atenção às guinadas de aceleração do carro do que às batidas do meu próprio coração.

— Dra. Begbie…

— Me chame de Cate — ela interrompeu, um pouco mais áspera do que antes. Não sei se reagi à abrupta mudança de tom ou não, mas ela imediatamente seguiu com “Sinto muito, foi uma noite muito longa e me cairia bem uma xícara de café”.

De acordo com o painel, eram 4h30 da manhã. Eu só tinha dormido por duas horas, mas me sentia mais alerta do que durante todo o dia. Toda a semana. Toda a minha vida.

Cate esperou até que os Rolling Stones terminassem a música, antes de desligar o rádio.

— Eles só tocam músicas antigas agora. Pensei que fosse uma piada, a princípio, ou algo que Washington quisesse, mas parece que é só o que pedem nos últimos tempos.

Ela olhou para mim com o canto do olho.

— Não consigo imaginar o porquê.

— Dra... Cate — eu disse. Até mesmo minha voz estava mais forte. — Onde estamos? O que está acontecendo?

Antes que ela pudesse responder, surgiu uma tosse do banco de trás. Eu me virei, apesar da dor no pescoço e no peito. Enrolado ali, numa bolinha protetora, havia outro garoto, mais ou menos da minha idade, ou talvez um ano mais novo. Aquele outro garoto. Max — Matthew — sei lá — da enfermaria, e ele parecia muito melhor do que eu me sentia enquanto dormia.

— Acabamos de deixar Harvey, em West Virgínia — disse Cate. — Foi onde encontramos alguns amigos que me ajudaram a trocar de carro e a tirar o Martin detrás do baú médico, no qual tivemos que escondê-lo.

— Espere...

— Ah, não se preocupe — Cate disse, depressa. — Nós garantimos que ele tivesse entradas de ar.

Como se essa fosse minha maior preocupação.

— Eles simplesmente a deixaram levá-lo para o carro? — perguntei. — Sem nem verificar?

Ela olhou para mim de novo e eu me orgulhei do olhar de surpresa.

— Os médicos em Thurmond usam aqueles baús para transportar resíduos médicos. Os controladores do acampamento começaram a forçar os médicos a jogar fora os resíduos eles mesmos quando o orçamento foi cortado. Sarah e eu estávamos encarregadas esta semana.

— Jhon? — interrompi. — Dr. James?

Ela hesitou por um instante, antes de acenar com a cabeça.

— Por que você p amarrou? — Por que ele... — Por que vocês estão nos ajudando?

Ela respondeu minha pergunta com outra.

— Você já ouviu falar da Liga das Crianças?

— Algumas partes — disse. — E somente em sussurros. Se os rumores fossem verdadeiros, essa liga seria um grupo antigovernamental. Eram aqueles que as crianças mais jovens — que chegaram mais tarde em Thurmond — alegaram que estavam tentando dominar o sistema do acampamento. Aqueles que, supostamente, escondiam as crianças para que não fossem pegas. Eu sempre imaginei que fossem a versão de um conto de fadas da nossa geração. Nada assim tão bom poderia ser verdade.

— Nós — disse Cate, deixando aquela palavra se afundar antes de continuar — somos uma organização dedicada a ajudar as crianças afetadas pelas novas leis do governo. John Alban — já ouviu falar dele? Ele costumava ser um assessor de inteligência de Gray.

— Ele começou a Liga das Crianças?

Ela fez que sim com a cabeça.

— Depois que a filha dele morreu, ele percebeu o que aconteceria com as crianças que sobrevivessem. Então, ele saiu de D.C. e tentou expor todos os testes que aconteciam nos acampamentos. O New York Times, o Post — nenhum deles queria publicar a história porque, naquele momento, as coisas estavam tão ruins que Gray os tinha sob controle por motivos de “segurança nacional” e os jornais menores desistiram com a economia.

— Então... — eu estava tentando aceitar isso, imaginando se eu a havia escutado mal. — Então, ele criou a Liga das Crianças para... nos ajudar?

O rosto de Cate iluminou-se num sorriso.

— Sim, é isso mesmo.

Então, por que você ajudou só a mim?

A questão surgiu como uma erva solitária, feia e com a raiz profunda. Esfreguei a mão sobre meu rosto, tentando afugentar as ruminações do meu cérebro, mas não conseguia espantá-las. Havia um sentimento estranho de ansiedade no meu peito, como se algo pesado estivesse tentando subir a partir do meu centro. Podia ser um grito.

— E os outros? — eu não reconheci minha própria voz.

— Os outros? Você quer dizer as outras crianças? — Os olhos de Cate estavam focados na estrada à nossa frente. — Eles podem esperar. A situação deles não é tão urgente quanto a sua. Quando chegar o momento certo, com certeza vamos voltar para buscá-los, mas, enquanto isso, não se preocupe. Eles viverão.

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