São Paulo

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*Foto do inicio do século XX de São Paulo, em destaque o Correio Paulistano foi o primeiro jornal diário paulista, destacou-se na defesa da abolição da escravatura e posteriormente ao apoiar a Semana de Arte Moderna de 1922

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*Foto do inicio do século XX de São Paulo, em destaque o Correio Paulistano foi o primeiro jornal diário paulista, destacou-se na defesa da abolição da escravatura e posteriormente ao apoiar a Semana de Arte Moderna de 1922. Acabou fechado em 1934 por ordem de Getúlio Vargas.

Mais uma vez o apito da maria fumaça era tocado fazendo com que Lorenzo prestasse atenção nele e sentisse um sentimento de nostalgia, o que fez com que sua expressão mudasse e com isso despertasse a curiosidade de Maria Antonieta que continuava a ler a sua frente.

- Posso saber o motivo da graça? – perguntou ela em tom sarcástico.

Lorenzo apenas deu um suspiro e a ignorou por completo, novamente seus pensamentos se voltaram para aquele apito e da imagem dele e dos outros garotos correndo pela Estação de São Paulo.

O apito da maria fumaça anunciava a próxima estação, pelo menos naquela viagem, outrora não, numa época em que tudo parecia carecer de cores, onde a dor o acompanhava sem perdão, o mesmo apito de agora significa um novo dia sem sequer ter chegado o alvorecer, acordava ainda com as estrelas a brilhar, o som do apito aos poucos ia aumentando anunciado que chegava o trem das quatro e meia, vagarosamente o pequeno garoto se levantava, levava a mão ao rosto, coçava os olhos, se despreguiçava e pouco a pouco despertava. Sentia a barriga a primeira parte do seu corpo que despertava, quando tinha a sorte de ter um pedaço de p~~ao que sobrara do dia anterior roía-o vagarosamente, somente depois disso fazia o que a natureza lhe mandava, para depois pegar a sua gaiota e seguir o seu destino pelas ruas de São Paulo que se encontravam completamente vazias, mas que logo, logo estariam repletas de gente. A caminhada demorava quase quarenta minutos até chegar ao seu destino, o Correio Paulistano, lá já se encontravam um bando de garotos reunidos, ao chegar muitos faziam piadinhas com ele, tiravam sarro dele, mais precisamente de sua mãe ou melhor de sua falecida mãe: Antonela. A italiana para despistar a todos disse que faria a vontade do seu ex-marido descendo em direção as terras de Rio Grande do São Pedro, tinha medo que viesse terminar o serviço e agora tomar a sua vida como daquele que carregava em sua barriga, por isso fez o caminho contrário indo parar em São Paulo. Tentava encontrar os seus pais que segundo as notícias estariam por lá, se estavam ou não nunca soube, pois, nada de bom encontrou por lá. Morou aqui e por ali, até que aos poucos o dinheiro acabou, não que tivesse recebido muito dinheiro de Dominico, não foi grande coisa, procurou emprego, mas consigo carregava um fardo o de uma criança pequena, por isso ninguém queria a empregar e acabou por conseguindo emprego nos únicos lugares que pouco requisitos eram pedidos e aqueles necessários tinha de sobra: beleza e juventude. Antonela trabalhara pelos cabarés de São Paulo, vindo a se afundar em tudo o que a vida noturna trazia, dos cabarés para os prostíbulos até parar nas ruas. Lorenzo com passar do tempo teve idade para entender o que sua mãe fazia, no início aquilo lhe cobria de vergonha e ódio, não que odiasse sua mãe, odiava a sua sorte como a de sua mãe, depois o ódio migrou para aqueles nomes que escutava das história que ela lhe contava um tal de Dominico que seria seu tio e de um homem chamado de Sandro Pelegrino que ambos por cobiça, ambição e vaidade tudo lhe tiraram, um pai, uma casa, um futuro e por último uma mãe, que sucumbira a tuberculose. Lorenzo não respondia aos garotos não tinha forças para isso apenas esperava pacientemente pela porta se abrir e rapidamente os garotos faziam fila e para cada um era distribuído um monte de jornais. Lorenzo agora retornava para a estação de trem o local onde venderia aqueles jornais, para isso ia na maior velocidade que conseguia, imaginava que ele mesmo fosse a locomotiva e a sua gaiota de madeira o vagão que puxava, por vezes chegava a imitar o barulho da locomotiva, para os transeuntes que cruzavam com o seu caminho a cena era engraçada, sinceramente não sei se existe graça na desgraça. Ao chegar na estação o garoto começava a vender os jornais, aos poucos os jornais iam sumindo de suas mãos, muitos os usavam apenas como distração enquanto aguardavam a chegada de seu trem, o certo que muitos iam parar no lixo ou no chão, quando Lorenzo via algum deles assim rapidamente tomava a posse do deles para si novamente, existiam alguns que devolviam o jornal para o garoto depois de lê-los, os que tivessem em bom estado ele tentaria vender de novo, os que estivesse ruins ou não conseguisse vender voltariam para sua gaiota. Terminada as vendas de jornais Lorenzo partia pela sua ronda pela estação lá ia ele atrás de estopa, fiapos de panos que os mecânicos usavam muitas vezes para limpar as mãos, corria de um lado do outro pelo pátio e juntava tudo o que encontrava indo parar tudo em sua gaiota. Pela hora do almoço ficava a espera, Lorenzo tinha feito algumas amizades por ali principalmente com um maquinista que se chamava Charles, esse sempre que possível convidava o garoto para comer junto com ele, senão estava o bondoso senhor por ali tinha que se contentar com as sobras das marmitas, alguns mecânicos costumava guardar parte de sua marmita para o garoto e quando não tinha nada restava comprar alguma coisa. Depois do almoço o garoto ia atrás de serragem, essa coleta fazia nas marcenarias que ficavam a oeste dali, com isso caminhava a tarde inteira, depois de enchido a sua gaiota chegava o momento de entregar tudo aquilo nas padarias e confeitarias que usavam aquele material em seus fornos, a maior alegria do garoto era quando recebia algum quitute como presente, ele adorava doces! Ah, como adorava! Quindins, bolo de coco, cucas, cuques... só de lembrar ele ficava com água na boca. A noitinha ele voltava para estação ou melhor para um de seus cantos, lá ficaria olhando os trens ir e vir imaginando para onde iriam. Deitado sobre jornais velhos, coberto por um coberto empoeirado esperaria pacientemente pelo sono e quando esse chegasse sonharia com a sua mãe, ela estaria toda embelezada, cabelos curtos, a boca pintada, sobrancelhas feitas, um perfume gostoso, um olhar fraternal, no entanto, em vez de encarar as noites paulistanas e todos os tipos de homens, ela ficaria ali abraçadinha com o seu filhote, o adorando, cuidando, velando, enquanto o mesmo dormia, faria carinhos em seu fino rosto, passaria a mão em sua cabeça, o aconchegaria sobre o seu colo, diria o quanto ele era lindo, de quanto era amável, de quanto amor detinha por ele, de quanto uma mãe ama o seu filho.

Foram anos difíceis para Lorenzo, dias que cada um deles era incerto não sabendo se comeria ou não, se apanharia, se seria roubado, como saberia? Porém a sorte um dia lhe sorriu, Charles o chamou para almoçar como de costume e lhe contou que tinha uma senhora interessada em cuidar dele, no inicio ele sentiu medo, como se alguém estivesse tentando tomar o lugar de sua mãe ou simplesmente medo do novo, do que há de porvir, mas o maquinista sabia de seus temores e tratou de o convencer lhe dizendo muitas coisas, coisas que maravilham uma criança que nada tem. E lá se foi Lorenzo para a casa da tal senhora, de mais de sessenta anos, cabelos todos brancos, baixa e um pouco abaloada, tinha olhos bem negros, pele bem clara coberta de sardas, quando o viu o olhou por todos os lados, pegou nos seus finos braços, sentiu o mau cheiro de suas roupas somente de se aproximar, mesmo assim não recuou e nada disse sobre isso, se apresentou, depois perguntou o seu nome olhando nos seus olhos, abriu um pequeno sorriso e recebeu aquela criança como fosse o filho que nunca tivera, Charles se despediu para nunca mais voltar. Não demorou muito para Lorenzo se soltar e começar a lhe contar sobre a estação de trem, sobre as marias fumaças, sobre o que cada um fazia lá, desde o maquinista ao foguista e a senhora que atendia por Carmen ficou somente escutando apreciando cada palavra, pois a muito tempo aquilo sonhara e finalmente agora se realizara.

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