Suas costas estavam repousadas no travesseiro, enquanto comia o mingau de aparência duvidosa, mas de gosto aceitável, em cima de uma bandeja. Ao seu lado, sem deixá-la em paz, estava Samuel. Embora aparentasse ser jovem, seu semblante cansado e desgastado dava-lhe uma aparência mais velha e sobrecarregada. Nem mesmo a pele morena conseguia disfarçar as bolsas roxas de olheira.
Os órgãos de Destiny não estavam mais queimando, assim como seus músculos e suas entranhas. A dor agora estava localizada apenas na costela enfaixada e na cabeça latejando, agora, como se um fino prego estivesse lhe alfinetando. Longford lhe contou que Brenner havia ficado possesso de raiva com o comentário sarcástico da jovem, e que era melhor começar a regular sua língua. Mas, como sempre, o comentário do rapaz de cabelos noturnos entrou por um ouvido e saiu pelo o outro.
Quando terminou de se alimentar, repousou o objeto que apoiava a cumbuca de mingau num carrinho de bandeja e permaneceu com as costas repousadas no travesseiro. Seus olhos estavam fixos em algum ponto do chão, mas sua mente permanecia no processo de confabular e criar vertentes. Sentia-se esgotada por não poder esquecer todo seu passado e, principalmente, sobre os questionamentos de Brenner.
— Samuel? — a jovem cortou o silêncio tão de repente que o rapaz, repousado na poltrona, quase adormecendo, tremelicou o corpo de susto.
— Sim?
— Brenner mentiu sobre as coisas que me falou mais cedo, não é? Quero dizer, minha mãe e meu pai não tinham poderes como eu, certo?
Destiny não confiava em Samuel Longford cem porcento, mas, devido o pouco tempo de convívio, sentia-se mais segura em questionar o rapaz do que questionar Brenner.
A feição de Samuel mudou de cansaço para uma que se assemelhava a dó, fazendo Kish se arrepender de tê-lo questionado e tornar a fitar o nada.
— Esquece. Foi uma pergunta estúpida.
Ele suspirou.
— É verdade, Destiny. Seus pais não só tinham, como ainda tem esses poderes.
Tantas vezes a jovem tentara induzir propositalmente a precognição, e agora, quando menos desejava, sentia-se submersa numa água fria e escura, petrificando aos poucos seu cérebro, seu coração e seu estômago. Uma onda de frio e ventania se apossou de seu corpo, fazendo seus braços e suas pernas se arrepiarem.
— Mas meu pai está morto — ela tornou a olhá-lo.
Seus olhos claros arderam, mas não marejaram, provavelmente porque já havia chorado o suficiente para um único dia. Enquanto os de Longford, mesmo densamente escuros, eram quase que acolhedores. Tinha compaixão neles, mas a jovem preferia acreditar que era coisa de sua imaginação por passar tempo demais sozinha.
— Não, Destiny — sua cabeça se abaixou, quebrando o contato visual — Eu sinto muito.
A garganta de Destiny se fechou, fazendo parecer que não era mais possível engolir a saliva ou até mesmo respirar. Seus olhos marejaram e seu corpo enrijeceu, como se uma parte dentro de seu peito tivesse se partido em diversos pedaços pequenos e pontiagudos, perfurando seu coração e deixando seu sangue escorrer e se espalhar, formando uma poça. Uma parte de Kish havia sido morta e despedaçada pela única pessoa que havia convivido. Pela única pessoa que havia lhe jurado que sempre iria protegê-la. Ótima proteção, mãe. Meus parabéns - pensou.
Laurence mentiu para a filha durante anos, sem nem ao menos dar um indício de que tinha poderes. Sem nem ao menos dar um indício de que o pai da jovem estava vivo. Os pensamentos de Destiny tornaram a fluir tão rapidamente quanto o processo de desaguamento de um rio. Teria Laurence afastado a menina do próprio pai propositalmente, ou o homem era mais um merda como Brenner? Se a jovem tivesse sido criada pelo pai ao invés da mãe, será que as coisas poderiam ter sido diferentes? Não adiantava pensar sobre, afinal, não faria diferença. Destiny estava no fundo do poço, afogada em seu próprio sangue.
Samuel ergueu a cabeça e, esperando ver Kish chorando ou com um semblante extremamente triste, no entanto, se deparou com uma feição neutra, isenta de qualquer sentimento ou mágoa. Contudo, os pensamentos de Destiny continuavam se desenrolando como um perfeito novelo de lã.
— Não sinta. Eu não estou sentindo — mentiu.
Silêncio.
— Então é verdade que Laurence me abandonou? — questionou friamente, mesmo com a garganta ainda fechada e seca. Citar o nome da mãe trouxe-lhe um gosto metálico e amargo a sua boca.
— Não tinha ninguém na sua casa, Destiny. Eu tenho certeza disso porque fui junto com Brenner para te buscar.
Se não se sentisse traída e abandonada, provavelmente, a jovem brigaria com Longford, mas as suas forças haviam se esvaído.
— Obrigada pela honestidade que nem mesmo minha m... que Laurence foi capaz de ter.
Laurence não era sua mãe. Mães cuidam e zelam, ao invés de abandonarem seus filhos.
Mas, enquanto Laurence cuidava de você, tudo o que você mais desejava era se livrar dela - sua mente zuniu, quase como um sussurro ao pé do seu ouvido.
— Quero ficar sozinha agora.
— Não vou deixá-la sozi...
— Você me deixou sozinha quando Brenner me levou para fritar meus neurônios, pode muito bem me deixar sozinha agora.
Samuel a fitou por alguns segundos, como se houvesse se ofendido com a fala ríspida da jovem, mas nada podia dizer, afinal, a garota tinha razão.
O rapaz se levantou e, antes de ir para o corredor através da porta, deu uma longa olhada para a jovem. Realmente sentia dó dela, como sentia de todos os outros experimentos que passaram pelo laboratório. Tentando afastar este sentimento, Samuel fechou a porta, deixando Kish sozinha com os pensamentos que tentava afastar de sua mente.
Destiny cogitou sair da maca e se arrastar até o armário para se dopar com o primeiro remédio que visse em sua frente, mas desistiu no mesmo segundo em que Maddy adentrou o quarto. Ela apenas se afundou para debaixo das cobertas. E ali permaneceu, como se estivesse tentando entrar em um estado de hibernação.
Não havia mais pelo o que lutar. Não tinha mais forças tiradas da imagem dos olhos verdes de Laurence. Tudo o que havia era um grande e doloroso nada.
— Oh, Twenty Eight, não fique tão melancólica. As coisas podem melhorar para você caso colabore mais conosco.
Kish abaixou a coberta até seu pescoço e fitou a mulher que estava repousada ao lado da porta. Os lábios de Maddy estavam curvados num sorriso maldoso e frio.
— Ou, quem sabe, Twenty Eight, podemos cortar sua língua para que permaneça desse jeito. Em completo silêncio.
O sangue de Destiny não ferveu, mas não porque estava calma. Mas sim, porque desde que colocou os pés neste maldito laboratório, seu sangue não deixou de ficar quente um segundo sequer.
— Ou eu posso cortar a sua.
— Como disse?
— Além de estúpida, é surda? Deve ser por isso que você fala tanta merda, por não conseguir escutar o próprio tom de voz irritante.
Maddy percorreu a pequena distância que as afastava e ficou próxima de Destiny, fazendo a jovem pensar que a mulher gostava de contemplar sua face.
— Você se acha realmente esperta, não é verdade? — disse baixo, tão próxima de Kish que a jovem podia sentir sua saliva chicotear sua bochecha. Em seu rosto extremamente pálido havia um sorriso, acompanhado por uma risada nasal — Mas eu vou acabar com isso agora!
Destiny pensou que a mulher iria usar sua navalha para outra finalidade, além da de tirar sujeira embaixo da unha. No entanto, a mulher saiu do quarto. A jovem não sabia o que esperar, nem se era alguma pegadinha sem lógica. Depois de alguns minutos, uma presença alta e esquelética adentrou o cômodo e se colocou em sua frente.
— Acredito que temos que conversar — entonou Brenner.
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Push me Harder ✧ Stranger Things
Fanfiction─── ↺ ❝fight is the only thing that makes me alive now.❞ +16 Quando a mãe de Destiny percebe que a filha tem poderes especiais, decide fugir e criá-la em outra cidade para mantê-la longe das garras do governo. Porém, com dezesseis ano...