Capítulo 1

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A garota entrou em casa de madrugada, sorrateiramente deixando um rastro de sapatos e roupas jogados pela sala.  Ela subiu as escadas em direção ao quarto de princesa, sem a preocupação habitual dos adolescentes em receber uma bronca dos pais acordados e desesperados com sua demora. 

Sua mãe viajava a trabalho, o irmão menor, Adam, passava férias na fazenda do avô e o pai praticamente morava no escritório da magnífica mansão, absorto no planejamento de outra brilhante campanha publicitária para alguma marca famosa. Naquele momento a garota não se preocupava com ninguém e ninguém se preocupava com ela também.

Cecília Anderson admirou seu rosto quase angelical refletido no espelho do banheiro. Esfregou as faces com espuma desmaquilante, deixando marcas pretas em volta dos olhos. Mais um olhar em direção ao espelho. Ela riu de si mesma, ainda eufórica com sua pequena aventura noturna. 

Com pouco cuidado enxaguou o rosto e em seguida o secou na toalha, manchando-a de rímel e delineador. Passou a mão pelos sedosos cabelos ruivos alisados com chapinha e assoprou um beijo para seu próprio reflexo. Descobrira recentemente inúmeras maneiras de livrar-se dos cachos grossos que a acompanhavam desde bebê, deixando-a com uma detestável cara infantil.  

Entrou no chuveiro após se livrar da blusinha preta de alças, procurando por marcas roxas em seu corpo, resultado das inúmeras quedas aprendendo a andar de skate com os amigos num parque do bairro vizinho. Não gostara tanto assim da experiência, mas tinha uma fome voraz por aprender coisas novas e, principalmente, estar com pessoas diferentes. 

Achava graça ao ver os olhares alheios diante de seu atrevimento. Sentia-se corajosa. Aos quatorze anos já terminava o ensino médio, mantendo uma fachada de garota exemplar na escola, para o prazer dos pais, e deixando sua personalidade impulsiva controlar suas escolhas em cada momento não supervisionado. 

Seus colegas de classe não gostavam dela, percebera rapidamente. Isso não a incomodara, apenas a instigara a estudar mais, a ser melhor que todos eles, a se esforçar mais e  aprender mais. Eles podiam odiá-la, mas os professores a adoravam. Adoravam sua maturidade, sua imagem de boa garota, suas palavras bem articuladas e declarações de admiração. 

Alguns adolescentes amargos não seriam obstáculo para sua meta de formar-se em Medicina até os vinte anos, como uma perfeita garota prodígio. Enquanto ela desfilava em seu caminho glorioso até o sucesso, os outros poderiam tentar, em vão, abalar sua confiança. Determinação não lhe faltava.

Quando estava completamente sozinha, frequentemente via-se pensando no assunto. Talvez ela também nutrisse rancor por seus colegas de classe tanto quanto eles nutriam por ela. Ela afastou aqueles pensamentos de sua mente ao sair do banho e foi acomodar-se na cama majestosa, após vestir uma camisola. 

Afofou uma almofada sobre o colo e ligou a televisão em um canal de notícias qualquer, para espantar aquela sensação de solidão. O celular sempre à mão piscou com algumas mensagens recebidas e ela foi tomada por uma súbita vontade de falar com Igor. 

Desde a morte de seu pai de coração os dois haviam se aproximado muito. Sua mãe não aprovava a amizade com ele por ser nove anos mais velho e por achar que fora Igor quem levara Paul para o caminho das drogas, mesmo que Ceci passasse horas tentando lhe convencer de que acontecera justamente o contrário: Igor sempre tentara salvar seu pai e não matá-lo. Ela clicou no nome dele e ouviu o sinal de chamada, em seguida sua voz sonolenta.

— Eu te acordei? — perguntou ela em tom falsamente apologético.

— Acordou... — riu Igor — Que horas são? Cinco?

Ela sorriu, escutando o barulho das cobertas farfalhando com o peso de Igor se movendo.

— Três — disse ela — Sabe, Igor... pensei muito hoje e acho que a personagem principal da nossa história deveria ser assassinada. O que você acha?

Garota InconsequenteOnde histórias criam vida. Descubra agora