Capítulo Único

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Era feliz antigamente e não agora.
Onde antes exalava um sorriso animado, hoje morde os lábios para conter a angústia.
Costumava estar sempre em festas. Acompanhava jovens vestidos de becas, meninas em seus bailes e noivas no dia mais especial de suas vidas, sempre com sua lente em mais perfeito foco possível, pois era essa sua profissão e adorava ganhar a vida desta forma, assim como seus clientes adoravam a qualidade de seu serviço.
Mas te pediram pra crescer, te mandaram crescer, proferiam palavras que insultavam a tua forma de sobreviver, falavam que não era responsável o suficiente que tu passasses a sobreviver de um trabalho informal e como tu, com essa profissão tão simplória iria orgulhar teus pais? Como? Se eles nem ao menos poderiam expor teu diploma em uma moldura dourada na sala de estar, na mesma sala esta onde estão os diplomas deles, dos teus irmãos e até mesmo de teus sobrinhos.
E tu, de todas as coisas que poderia fazer, fizestes a pior burrada da tua vida, tu os escutaste.
Estudou, batalhou, dedicou, não descansou e por fim formou.
"Orgulho de tua família", eles diziam.
Agora teus pais podem morrer em paz, pois tu tinhas um papel carimbado pela universidade com seu nome impresso, para que enfim eles pudessem emoldurar e só lhe custaram dez semestres da tua vida e a destruição da tua perfeita saúde mental. Agora era bacharel e pós-graduada em análise criminal, tornou-se fotógrafa forense.
Ainda fotografava para viver, assim como fazia a anos atrás, mas agora assinava carteira, tinha um salário fixo e benefícios, tinha plano de saúde e até plano dentário , tinha seu nome e foto gravados em um crachá pendurado em teu pescoço com o emblema da instituição que era tua dona e como se fosse um boi marcado, tu passeia pelas cenas do crime com um rótulo pendurada no peito, que balança conforme teus passos aumentam, já sabendo o que vai encontrar no final da linha amarela.
Teu salário é exorbitante, muito maior do que antes já havia tido ou sonhado, mas agora o júbilo que havia estampado no teu rosto ficou no passado junto do teu cachê de quinhentos e cinquenta reais por festa e hoje tu já não sabes mais o sabor da felicidade.
Ainda assim, não conseguia deixar de comparar seu ofício anterior com a ocupação macabra que praticava atualmente.
Os agudos das músicas que batiam junto com seu coração enquanto fotografava vestidos de gala em moças animadas com a noite, foram substituídos por um silêncio mórbido onde mesmo em uma sala com quatorze homens só podia se ouvir o barulho do disparar de sua câmera que pesava em tua mão em direção ao rosto da vítima estirada no chão, em uma tentativa de foto no ângulo vertical.
Não conseguia deixar de comparar também a sim mesmo, a antiga fotógrafa de cabelos coloridos e esvoaçantes. Rosa, roxo, verde, azul... Cada semana mudava de cor, por vezes, deixava as quatro ao mesmo tempo, como se fosse um arco-íris que escorria até o final da sua cintura. Hoje seus cabelos eram negros, tão negros quanto a sua alma fica após seus encontros com a morte através da lente, que em algumas horas se transforariam em imagens 15×21 em suas mãos, que já estavam sem unhas por roê-las.
E não foram só as cores que lhe foram apagadas, também lhe roubaram toda magnitude e comprimento, pois o cabelo que antes fazia-se enroscar em seus braços, hoje terminam três dedos abaixo de suas orelhas. Foram quase sessenta centímetros jogados no lixo junto com suas sobras de comida.
Seus cabelos eram iguais a de outras sete ou oito mulheres que trabalhava na sua unidade, quase como se fosse o padrão do local. Ou nascia como homem ou tornaria tua imagem semelhante, visto que nem em teus piores pesadelos tu podia contaminar o corpo sangrento com teu pelo feminino.
Mesmo sendo a única do gênero que saía para o campo, empunha respeito com seus olhos cheios de olheiras profundas. Nenhum homem daquela sala sequer lhe direcionava o olhar e faziam certo, pois a carreira estressante não lhe tirou apenas a vitalidade, também lhe tinha sugado a libido que um dia houvera no seu corpo.
Ela era a primeira a fazer contato direto com a vítima e todos haviam de lhe esperar, porém ela nunca demora a chegar após um chamado, não importava o tamanho do salto que calçava.
Era respeitosa com os cadáveres, por mais que não acreditasse que sua alma mais pairava mais pelo local. "Isso é só sangue, ela já não sente mais dor", pensava tentando afastar-se do medo e sofrimento que lhe corriam a espinha sempre que se deparava com um novo corpo despejando seu líquido vermelho próximo a seus pés protegidos pelo tecido de não-contaminação.
Após fazer aquela cena fatídica tornar-se eterna com apenas alguns clicks ela já estava quase livre de suas tarefas periódicas, mas não sem antes se direcionar ao escritório para fazer a seleção das mais drásticas para perícia e que possivelmente poderia passar pela corte de julgamentos, se a falecida tivesse sorte.
Os casos judiciais de seu país podiam falhar, mas ela não e por mais brutais que suas fotos pareçam, fazia essa seleção com a esperança em seu coração de que desta vez a pessoa certa será punida da forma prevista, segundo os livros que lia durante a faculdade.
Ao finalizar seu expediente, sempre esbarrava com as mesmas pessoas que trabalhavam no período noturno de seu setor e como de costume era confortada com uma xícara de café puro e forte e por vezes, lhe perturbavam com conversas vazias sobre o clima. Nunca havia nenhum entusiasmo nas vozes que circulavam naquelas salas, pois todos sabiam que como no dia anterior, amanhã também chegaria registro de mais corpos de mulheres jogadas ao chão mergulhadas em sangue como se não fossem nada para seus assassinos.
Mas sabia que elas eram importantes, pelo menos para ela e tornou o objetivo de sua vida fazer com que os ceifadores sintam arrependimento e dor, bem como suas vítimas sentiram e desejava que eles acordassem de seus pesadelos atrás de grades de ferro tão forte quanto a dor que se acentuava o coração das famílias dos mortos pelas mãos do mesmo.
O infortúnio de teu coração é que não podia fazer o julgamento, apenas o registro, mas ficava satisfeita em ajudar da sua forma, porém nunca foi parcial, em todos os anos na profissão nunca se impedia de ter pensamentos mórbidos sobre o criminoso, mas ainda assim, clamava apenas para que a justiça seja feita perante os olhos dos homens e dos deuses da suprema corte.
Chegando em casa, ao fim do dia, ela finalmente poderia usufruir de um pouco de tranquilidade oferecida por um banho de água fervente que fazia com que uivos espontâneos saíssem de sua garganta. A água ardia, mas não tanto quanto o tiro que a vítima da noite havia levado na testa.
A dor que a água escaldante lhe proporcionava era a única maneira de esquecer os corpos que via durante o dia e para ela foi inadmissível começar a fazer isso apenas três anos após a sua formatura. Sofreu por anos de pesadelos e angústia que mais pareciam duas entidades que brincavam de roda em volta de sua cama durante a noite e lhe faziam ficar acordada, porém sempre conservava seus olhos fechados até o amanhecer, pois temia ver a alma dos defuntos em frente a sua cama.
Comprimidos para ansiedade, antidepressivos e outras drogas faziam parte de sua dieta, assim como a de noventa por cento dos seus colegas de trabalho, porém eram as bolhas que a água quente lhe causava que eram capazes de levar paz para sua alma e um sono tranquilo abraçada pela escuridão.
Não dormia até fazer sua última tarefa do dia, mas dessa vez, a tarefa era particular.
Toda noite se direcionava à escrivaninha do seu quarto e tirava um diário de couro marrom que apresentava espessura triplicada em relação ao seu tamanho original, devido as colagens que haviam em sua parte interna.
Folhava o caderno com mais de seiscentas páginas, notava que já lhe sobrava poucas em branco, isso a deixava chateada, assim como fica toda a noite. Neste caderno ela mantinha registros pessoais de todas as vítimas que tiveram a última foto de suas vidas capturadas por suas mãos e na parte inferior de cada página havia o nome e data de seu óbito. Acrescentava um ponto em vermelho na lateral da parte superior nos casos onde o sádico havia sido incriminado e detido, lhe entristecia ver que sua grande maioria não continha estes pontos.
Tirou de sua bolsa uma das fotos da vítima do dia, onde se destacavam seus cabelos avermelhados que horas antes costumavam ser loiros.
'Apenas uma hoje" pensava enquanto anexava o retrato no caderno onde haviam outras centenas de vítimas, "amanhã talvez não haja nenhuma". Sabia que seu pensamento era de um otimismo que beirava a alucinação, pois no fundo tinha ciência de que esse foi apenas um dia de sorte e que no dia seguinte haverão dezenas de corpos de mulheres registradas apenas em sua unidade.
Após guardar sua agenda na gaveta onde há muitas iguais a esta, tomou seus remédios prescritos para poder encerrar o dia.
Algumas noites antes de dormir se culpava por ter seguido o caminho que sua família lhe havia sugerido, pois isso fez com que ela perdesse a esperança na humanidade de certa forma.
Seus pais, essa noite, assim como todas as quinhentas e vinte três noites anteriores, descansam no mesmo lugar que seus avós estão descansando a mais de dez anos e seus corpos já sem vida se aprofundam nas terras santas que escolheram antes de seu fim, vestidos com casulos de madeira sob medida, que provavelmente também apodrecem junto aos seus corpos.
Enquanto ela, tem sua vida sugada cada dia mais pelos corpos que retrata com sua câmera de alta qualidade, em uma profissão que nunca lhe fará sorrir. Nem ela, nem ninguém.
Mas não desistia, jamais cogitou essa opção, nunca passou pela sua cabeça a possibilidade de regressar ao ponto onde estava a anos atrás, pois sabia que sempre que fotografar festas como no passado se lembrará do rosto dos que hoje jazem em suas criptas.
Fotografar não era mais divertido e nunca mais tornaria a ser, mas era necessário, pois se não fosse ela, ninguém jamais saberia o nível de perversidade de que um ser humano poderia chegar.
Era impossível acreditar que um sujeito que antes registrava os melhores momentos da vida de uma pessoa, passou a ser a que torna eterno o momento mais triste de sua família e por mais perturbador que fosse, ela queria estar por trás da última foto de cada mulher assassinada para que fossem lembradas de alguma forma e um dia a justiça seja praticada. E não abdicaria dessa função a não ser que inverta de posição em relação a câmera.
E pensando nisso caiu no sono, o relógio de sua parede marcava "3:50", teria quatro horas e dez minutos para dormir, porém, seu celular estava sempre por perto, pronto para proclamar em mais alto som o anúncio de outra vítima que não conseguiu sobreviver.

Por trás da última fotoWhere stories live. Discover now