16 - "Eu sou seu medo."

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Ela estica uma de suas mãos em minha direção, e eu já sei o que devo fazer...

Levo minha mão direita ao encontro de sua mão. Sinto seu toque frio. Ela me olha intensamente com os seus olhos de fogo, e eu os encaro como se aquilo fosse a última coisa que verei na minha vida medíocre. Nos seus olhos posso ver um lugar, onde pessoas estão a chorar desesperadamente, elas estão presas em correntes e tem seus corpos surrados e feridos, e em um desespero, gritam por socorro!... E lá onde essas pessoas estão lamentando, há um homem que está com um jaleco branco, ele está próximo a uma mesa cirúrgica. Ele aplica no homem que está a mesa, um líquido de cor vermelho intenso – nesse momento o corpo que antes estava com uma cor viva, fica pálido, tão pálido quanto um morto. Começo a sair da cena lentamente como a alguém que está sonhando, volto aos olhos da menina das sombras.

Ela solta minha mão lentamente, e a frieza na minha mão vai desaparecendo. Quando ela tira de vez sua mão da minha, percebo que o lugar que eu estou é minha loja. Olho ao redor, tudo escuro, tudo do jeito que eu deixei... Olho novamente para onde estava a menina, mas ela desapareceu.

Como disse, estou em minha loja, minhas roupas são as mesmas de antes, não estou suja e nem ao menos com uma gota de sangue. O que foi que aconteceu comigo?! Em um momento estou em minha loja, em outro, estou em um lugar amaldiçoado com um psicopata em série matando macabramente pessoas... E agora, estou aqui de novo! Estou ficando louca, acho que tudo não passou de um sonho, talvez o medo que eu tava, me fez imaginar coisas... Não! Não foi um sonho, não foi uma ilusão, foi tudo muito real! A menina das sombras, a criança, a mulher!... Tudo foi real, e eu sei disso.

Um forte trovão me assusta, e eu acordo de meu transe. O vento, a tempestade, a escuridão, tudo está aqui. Olho para o local, tudo está normal, tudo está como antes, nada mudou... onde está a menina das sombras? Não sei, e não quero saber. Olho para o relógio, não mudou nada, apenas 1 minuto, é como se eu nunca tivesse saído dali. Estou ficando louca!

Pego as chaves do meu carro. E vou em direção à porta. Antes de sair, os relâmpagos clareiam o local, me fazendo ver novamente a sombra da menina nas paredes.

— Não deixe que as pessoas nos enganem, Marie... Não deixe!

A voz melodiosa e sofrida da menina, me arranca um forte arrepio. O que será que ela quer dizer com isso? – balanço a cabeça, o que mais quero é sair logo dali. Meu carro ficou estacionado à uns 30 metros da minha loja. Coloco o capuz em minha cabeça, e saio correndo em disparada ao meu carro. Quando chego enfim, estou completamente acharcada, melhor com água, do que com sangue – esse pensamento me tira um sorriso, afinal, um sorriso em meio a dor conta muito mais.

Abro à porta de meu Opala, entro, confiro se não há atrás nos bancos — não, não há. Ligo o rádio do carro. - Carro antigo sem muitos mimos, poderia ter um novo já que meu marido queria me dar, mas recusei, afinal, clássico é clássico.

— Isso! 'Psychosocial' de Slipknot! – psicopata, realmente, minha vida está em torno de psicopatas, que ironia. Aumento o máximo possível do meu pobre som. E vou escutando esse rock, que me arranca arrepios enquanto vou dirigindo de volta pra casa.

Enquanto a forte chuva vai batendo nos vidros, vou pensando na minha passagem por aquele lugar horrível, a pobre criança que tanto pediu por socorro, me sinto culpada por não ter chegado a tempo... Mas e se chegasse? Teria eu, feito algo? Aquela criatura de quase 2,5 de altura era bem forte, talvez não pudesse fazer nada senão vê-la morrer, sou fraca, talvez a culpa daquilo fosse minha... Por eu ser tão fraca! Pobre criança, lembro de seus olhos mortos me olhando, e de como aquele psicopata arrancou bruscamente sua cabeça... De alguma forma acho que ele parecia um "mongolóide", devia mesmo ser um débil mental para fazer tais coisas daquele tipo. Maldito.

Vou dirigindo e as lágrimas de ódio vão descendo no meu rosto. Agora aquele maldito está no inferno, lá é o lugar de pessoas como ele deve ficar, ou melhor, nunca deveriam ter saído. O Maldito psicopata e o velho que me estuprou... Ah! O velho sujo e asqueroso, como eu me arrependendo de não tê-lo trucidado, como eu me arrependo de não ter arrancado seus órgãos um por um com aquele punhal, deixaria só um corpo aberto e cheio de cortes, cheio do mal, cheio da marca de Marie Ames — um forte arrepio me invade, mas não é um arrepio de medo, é um arrepio de satisfação, um arrepio do grande ódio que eu tenho em mim.

— Não deixe ninguém te enganar, Marie! – me assusto com a voz, freio bruscamente o carro fazendo-o derrapar na pista molhada, até que ele para por completo, olho ligeiramente para o banco ao lado... — As pessoas são desprezíveis, elas te usam e depois te tratam como lixo! Não deixem que façam isso com você, Marie — é ela novamente, é a menina das sombras, mas não estou com medo de sua presença, mas ela sempre caça a melhor hora para aparecer, e some sempre que preciso, — parece até aquele mago imbecil de um desenho que adorava assistir, na qual o mesmo mago sumia sempre que os babacas precisavam dele, se bem que os babacas nunca conseguiram sair do lugar em que ficaram presos – ainda acho que deveriam ter matado aquele unicórnio "viado", e ter deixado aquele moleque... Como é mesmo o nome dele? Deixa pra lá.

Lá está ela, sentada, de uma maneira bem educada e comportada, e agora ao invés de sua navalha, ela segurava uma boneca suja e maltratada que está caindo aos pedaços. Seu vestido vermelho e sujo vão até seus joelhos, suas pernas estão com uma meia-calça branca e rasgada, seus olhos direcionados a boneca, seus cabelo vermelhos descem por suas costas – cabelos sujos e quebrados, como tudo nela.

Tenho que falar com ela, ela é a única que pode me ajudar a saber; saber o que ela é; saber o porque dela ter me levado para aquele lugar, ou até mesmo o porquê dela está me atormentando...

Respiro fundo. Algo molhado desce em minha testa, passo a mão, noto que é sangue, devo ter me cortado ao freiar o carro daquele jeito. Olho pra menina, tenho que falar com ela, tem que ser agora.

— Q-quem é v-você? – é tudo que consigo pronunciar, mas, me sinto orgulhosa por ter conseguido.

Ela não responde, vira lentamente seu rosto para mim, me encara friamente, seus olhos de fogo me envolvem... Estou novamente preso aos olhos da menina das sombras, sinto uma enorme dor vindo da minha barriga, parece que algo anda nela, e está brincando com seus malditos amigos lá dentro, mas não consigo me mexer, tudo que posso e consigo fazer é olhar os olhos de fogo da menina.

Olho intensamente para eles , e como da última vez, estou em um lugar escuro, cheira a detergente e sabão. Vejo uma luz, uma luz de uma porta que é lentamente aberta, o lugar que estou parece um depósito, vejo quem a abriu entrar, um menino e uma menina... o menino é John... A menina sou eu!... O lugar que estou é o depósito da escola, estou no meu passado, e o fato que mudou minha vida está prestes à acontecer. Não posso permitir, não posso! Vou rapidamente até ela, tento gritar com ela tentando avisá-la, mas ela não me escuta, tento tocá-la, mas é em vão, tudo o que posso fazer é olhar a cena que marcou minha vida.

Esse é o momento os outros meninos chegam trazendo com eles o velho, cheiro dele é muito forte, nunca vou esquecer, nunca vou esquecer o que ele fez comigo. Os outros saiem, e posso ver a expressão do rosto de John, expressão de um covarde, um maldito covarde! Me enganou e ainda me vendeu como prostituta. Maldito.

O que me resta a fazer é chorar junto com a Marie que está embaixo do velho, sendo lambida em suas partes por aquele velho asqueroso. Choro, grito, tento ajudar, mas nada adianta, caio no chão e choro mais ainda. Esse é o momento em que eu o mato, agora quero ver anteciosamente à morte desse estuprador de merda... Nesse momento vejo alguém se aproximando de Marie, é a menina das sombras, ela está do lado de Marie. Marie tenta pegar o punhal do velho, mas noto que ela tem dificuldade, por um momento acho que ela não vai conseguir pegar, mas vejo a menina das sombras ajudá-la, e segurando a mão de Marie - como alguém que está ensinando algo. Enfia rapidamente no olho do velho, que cai morto. A menina das sobras ajuda Marie a tirar o corpo do velho de cima dela, e sai de mãos dadas com ela até a porta, assim deixam o local. A escuridão volta, a dor começa a me dilacerar, e em um grito, eu estou de volta no carro, olhando intensamente para os olhos de fogo da menina das sombras.

— Sou seu anjo, sou seu demônio, sou seu sofrimento, sua dor, seu ódio, suas mágoas! Eu Marie... – diz, me olhando intensamente nos olhos — Eu sou o seu grande medo! Sou VOCÊ!

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Obrigado mesmo por estar acompanhado. Forte abraço.

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