v. espelho

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Quando abro a porta no final do corredor, aperto o roupão ainda mais fechado e cruzo os braços sobre o peito, tentando esquecer o fato de que estou nua por baixo dele.

Finnick está de pé perto da entrada, um ombro distraidamente encostado à parede, tendo uma conversa íntima com uma mulher cujo rosto não posso ver, já que ela está de costas para mim. Só posso ver seu cabelo, longo, liso e brilhante, da cor de goma de mascar. Mas posso dizer que ela está bastante envolvida na conversa. Finnick está segurando a mão dela enquanto sussurram um ao outro, e ele está lhe dando um meio sorriso cheio de segundas, terceiras e quartas intenções. Inacreditável. Ele é inacreditável.

Eu bato a porta atrás de mim antes que possa me parar. Finnick ergue o olhar lentamente, como se já soubesse que eu estava ali — talvez tivesse notado minha presença antes mesmo da porta se fechar — e a mulher do cabelo cor-de-rosa se vira para mim com uma graça exagerada, o cabelo brilhante movendo-se com ela. Penso ter visto nuances douradas entre os fios, mas não dá para ter certeza.

Ela tem uma pele tão clara que é quase translúcida, sem nenhuma ruga visível, e olhos azuis amendoados. Mas dá para perceber que ela deve ter no mínimo uns trinta anos pelo modo como se porta, e como seu rosto é liso de um jeito artificial. Olá, alterações cirúrgicas.

— Eu sou Daizee. Você deve ser Sirena — sua voz é aguda, mas não é totalmente desagradável. É quase musical. Mas ela me olha como se eu fosse qualquer coisa além de uma pessoa, então quase que imediatamente se volta para Finnick, tocando seu braço em um gesto que deve pensar ser discreto, e imediatamente não gosto dela. Ele tem dezoito anos, pelo amor de Deus... — Farei com que ela seja inesquecível, Finnick, querido. Sequer vai reconhecê-la quando eu acabar.

Ah, que lisonjeira. Ela sorri para ele. Dá para notar seu desejo profundo de agradá-lo.

— Será que podemos acabar logo com isso? — eu digo. Não estou aqui para assistir minha estilista flertar com meu mentor, e meu cérebro continua me lembrando de tempos e tempos que estou completamente nua por baixo do tecido deste robe.

Daizee olha para mim sem emoção.

— É claro — ela meneia a cabeça em minha direção, indicando minha veste. — Comece tirando isso.

Dou um passo para trás. Por reflexo, encaro o rosto divertido de Finnick, que me observa com um brilho descontraído nos olhos verdes brilhantes.

— Ele vai ficar aqui? — pergunto, mas não é bem uma pergunta. Não há jeito no mundo de que eu tire minhas roupas na frente dele.

A estilista olha de mim para Finnick, como se não tivesse nem mesmo pensado sobre isso, mas, quando pensa percebo seu rosto mudar. Ela concorda comigo. Naturalmente, não quer uma mulher nua perto de Finnick. Ninguém quer dividir a atenção dele. Pelo menos em uma coisa podemos concordar.

E isso que acabam de se conhecer, até onde sei. Ele tem todos da Capital na palma das mãos. Reviro meus olhos.

— Eu posso ficar, se você quiser — diz ele para mim, e não sei dizer se está brincando ou falando sério. Na verdade, nunca o vi dizer nada sério até agora, então não há como medir.

Estou prestes a responder, mas Daizee chega primeiro.

— É melhor você esperar pelo desfile, querido — ela diz com a voz carregada de doçura, batendo os cílios longos e artificiais para ele. — Não queremos estragar a surpresa, não é?

Ele solta da jaula o sorriso avassalador, olhando-a nos olhos.

— Então vou aguardar ansioso para ver o seu... trabalho — ele praticamente ronrona para ela. É sério.

Quando Finnick toma a mão dela e deposita um beijo delicado ali, tenho certeza de que ela vai desmaiar.

— Não ficará decepcionado! — promete Daizee. Ela não desmaia afinal, mas está meio que se movendo para cima e para baixo, como uma criança entusiasmada. Ela é ridícula.

Finnick passa por mim com seu sorriso enigmático e desaparece do lado de fora.

Dou uma boa olhada ao redor, sentindo como se tivesse tirado um peso do peito.

Daizee se põe ao trabalho imediatamente, batendo palmas para chamar um trio que apresenta como minha equipe de preparação. São três garotas, mas usam tantas penas e cores extravagantes que mais parecem três aves silvestres. Eu não memorizo seus nomes.

Preparação é, na verdade, uma palavra sofisticada para limpar, escovar, cortar e perfumar tudo o que for possível no corpo humano. Não é um banho. Até minha alma deve estar limpa quando terminam e Daizee volta para me ver, carregando os mais diversos materiais que uma estilista poderia usar. Tecido, pedras, brilhantes. Para ser sincera, estou com medo do que ela pode fazer comigo, porque não me disse nada. Estou torcendo para que me vista somente como mais um peixe qualquer.

Mas não é isso o que ela faz.

O dia passa devagar enquanto ela trabalha com devoção no traje que devo usar. Eu estava esperando algo completamente ridículo, então você pode imaginar meu espanto quando ela nota meu colar de concha pela primeira vez e diz:

— Você pode ficar com isso. Vai combinar com o traje.

Horas mais tarde, quando finalmente ela me veste com sua obra prima — como chama — e me deixa ver meu reflexo pela primeira vez, tento erguer meu queixo do chão. Falho miseravelmente.

— Lindo, não é? — ela me pergunta, cheia de auto orgulho. — Consigo fazer até você parecer com uma sereia de verdade.

Estou vestindo um top — é um pouco maior do que um sutiã e é isso, mas não é feito de tecido em si. Foi esculpido minuciosamente, cada pequena escama simetricamente posicionada, um material duro, mas não desconfortável, que se adere a minha pele de modo natural. A cor dominante é o azul marinho, mas conforme me novo dá para notar ondulações sutis de dourado. Estou surpresa em ver que não estou ridícula nele.

A parte debaixo da veste começa parecida com a de cima — feita do mesmo material, as mesmas escamas azuis esculpidas descendo pela minha cintura até a altura da coxa, onde um tecido suave toma conta e se abre ao meu redor com leveza surpreendente, uma saia cheia de camadas que ondula até meus tornozelos.

Eu já ouvi histórias sobre sereias — mulheres lindas com caudas de peixe e a habilidade de encantar os homens com suas vozes em alto mar. Os pescadores gostam de ter alguma coisa para contar, e as crianças gostam de acreditar.

O espelho me diz que me pareço muito com uma agora.

A mulher que olha de volta para mim tem um rosto deslumbrante, olhos destacados por uma maquiagem azul profunda e cintilante, cabelos cacheados coroados por uma linda tiara de conchas, lábios pintados da cor do mar no fim de tarde. Não sou eu. Sou eu. É alguém entre nós duas. É Sirena e é uma sereia de verdade. Lembro-me do apelido de meu pai para mim e de repente sinto vontade de agradecer Daizee por este presente inesperado.

Mas não faço isso. Sou orgulhosa demais. Em vez disso, deixo que minha equipe me conduza para o subsolo, onde ficam os carruagens e para onde Aris deve estar sendo levado agora.

Como ele estará vestido? Será que a gêmea de Daizee é tão boa quanto ela?

Meu coração acelera no peito. Já vou descobrir.

A Cerimônia de Abertura já vai começar.


N/A: Deixei algumas imagens para ajudar a visualizar o que imaginei para a roupa da Sirena. A maquiagem está no link externo. Beijinhos! ♥

À Deriva | f. odairOnde histórias criam vida. Descubra agora