Querida Judy Garland,

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Às vezes a gente guarda as histórias que nossos pais contam sobre o passado. Mas essas memórias herdadas são diferentes da realidade e diferente das nossas próprias lembranças. Como se tivessem uma cor própria. Não estou falando de um tom sépia nem nada assim. Meus pais não são tão velhos. Só quero dizer que existe algo peculiar no tom do que eles contam.

Quando penso nas histórias que conheço sobre sua infância e sua família, e eu vejo quase na mesma cor que vejo as histórias do meus pais. Não sei por quê, mas talvez tenha a ver com o estranho limite entre tristeza e alegria. Ou talvez seja por causa da maneira como minha mãe dizia que seus filmes lhe davam esperança quando ela era mais nova.

Ela adorava vê-los conosco, então não conheço você só de O mágico de Oz. Vimos todos eles -- Desfile de páscoa, sofi e eu costumávamos levantar do sofá e cantar com você -- "Zing zing zing went my heartstring", sofi desfilando pela sala.

Minha mãe dizia que, quando era menina, queria ser como você. A família do meu pai era bem tradicional, mas a da minha mãe não, e talvez essa tenha sido a maior diferença entre eles. Ela cresceu aqui, em Albuquerque. Nunca nos contou nada específico, mas a mãe dela (que morreu quando eu era pequena) era alcoólatra, e acho que o pai era bem rígido com ela e tia Taylor antes de ter câncer. Meu avô morreu quando ela tinha dezoito anos, e tia Taylor, vinte e um. Depois, minha avó continuou bebendo muito, e tia Taylor entrou para a igreja e arrumou emprego como garçonete, e minha mãe foi morar em uma quitinete e começou a trabalhar num bar e guardar dinheiro para ir para a Califórnia realizar o sonho de ser atriz.

Enquanto isso, fez aulas de teatro e participou de algumas peças locais. O melhor papel dela foi logo depois de completar vinte anos. Ela foi Cosette em Os miseráveis, e os jornais publicaram críticas ótimas. Minha mãe guardou todas em um álbum, que costumava nos mostrar quando éramos crianças.

Numa noite, meu pai parou no bar em que minha mãe trabalhava. Ele estava de passagem pela cidade, atravessando o país de moto, nós "tempos loucos", segundo ele. Pelas fotos antigas, sofi e eu achávamos que ele era bem bonitão. Minha mãe também deve ter achado, porque, quando ele entrou no bar, ela o convidou para ver a apresentação de Os miseráveis naquela noite.

Meu pai diz que a duração da peça foi o bastante para se apaixonar. Quando minha mãe saiu do camarim, ele estava esperando com um buquê de margaridas . Ela o convidou para ir ao apartamento dela, e os dois ficaram acordados até tarde, olhando para as estrelas, acomodados no teto do prédio, conversando. Depois disso, meu pai arrumou um emprego na construção do novo hotel e passou a encontrar minha mãe sempre que possível. Eles iam de bonde até o topo das montanhas, viam o pôr do sol alaranjado e dançavam músicas dos Beatles no apartamento dela. Quatro meses depois, minha mãe descobriu que estava grávida de sofi, e eles decidiram se casar.

Quando ela contava essa história, dizia que sempre quis uma família, mas que só quando nascemos soube o que isso significava. Escrevendo agora, parece ruim. Mas, quando éramos mais novas, achávamos romântico. Sofi pedia para ouvir a história o tempo todo, e minha mãe adorava dizer que ela foi a centelha que deu início a tudo.

-- Você estava pronta para vir ao mundo, então veio. Temos que agradecer a você, meu amor.

Quando éramos pequenas, minha mãe as vezes fazia testes para teatro ou publicidade. Uma vez ela conseguiu um papel comercial do banco Rio Grande. Eles a filmaram acordando de pijama nós degraus de sua nova casa e dizendo "estou sonhando?". E então uma mulher vestida de fada do crédito colocava as chaves na mão dela. Quando passava na TV, nós gritávamos:

-- Olha, é você, mamãe!

Mas a maioria dos testes não dava certo, e ela voltava para casa totalmente desanimada, murcha. No final, disse que não tinha mais jeito e que, se quisesse ser atriz de verdade, precisava morar na Califórnia. Começou a pintar e arrumou um emprego arquivando papéis no consultório de um médico. E disse que ser mãe era seu verdadeiro trabalho. Que éramos sua maior realização.

Minha mãe dizia o tempo todo que queria que tivéssemos uma infância feliz, mais feliz que a dela. Às vezes, ela nos perguntava se éramos felizes, e sempre dizíamos que sim. Mas ela queria poder nos dar mais. Gostava de imaginar "um dia." "Um dia teremos uma casa com piscina ." " Um dia vamos aprender a andar de cavalo." " Um dia usaremos lindos vestidos com lantejoulas dos pés à cabeça, como os das atrizes de TV." " Um dia iremos para a Califórnia e veremos o mar juntas."

Ela, sofi e eu costumávamos falar sobre isso, planejar a viagem de carro perfeita. Minha mãe dizia que as ondas tinham um sim mais agradável que os trens, a chuva ou o fogo estalando. Costumávamos imaginar que, quando tivéssemos dinheiro, pegaríamos a estradas I-40 e seguiríamos. Pararíamos nós Arby's do caminho para comer sanduíche de "rosbesta" ( que tinha esse nome por causa de o Grinch). Pegaríamos um quarto de hotel e ficaríamos acordadas a noite toda, vendo filmes e tomando refrigerante. No dia seguinte, iríamos até onde a terra encontra a água.

Mas, no fim das contas, minha mãe foi sem nós. Ela chorou quando decidiu.

-- Preciso viajar por um tempo. Sinto muito-- disse. -- Mas não consigo ficar aqui agora.

Quando tentou me abraçar, fiquei paralisada em seus braços. Eu queria dizer que ela não estava fazendo como tínhamos combinado. Que deveríamos ir juntas. Claro que era tarde demais para isso, mas me perguntei por que nem ao menos se ofereceu para me levar junto. Ela disse que colocaria a cabeça no lugar, remendaria o coração na medida do possível e voltaria logo. Mas não disse quando seria isso

Agora é só uma voz no telefone. Ela me ligou na casa da tia Taylor algumas horas atrás.

-- Oi, Camila. Como você está, querida?

-- Bem. E você?

Tentei imaginar onde minha mãe estava, mas tudo o que aparecia em minha mente era um cartão-postal desbotado, palmeiras finas em um céu azul-claro.

-- Estou bem. Estou com saudades, querida.-- Ela fungou, e meu corpo ficou tenso. Não chore, não chore, pensei. Detesto quando minha mãe chora. Sofi sabia fazê-la parar, mas eu nunca consegui.

-- É, eu também.

-- Como vai a escola? O que fez hoje?

-- O de sempre. Fui à aula.

-- Está fazendo amigos?

-- Uhum.

-- Que bom. Fico feliz por você.

E então houve um longo silêncio. Eu não sabia o que dizer.

-- Mãe, preciso ir. Tenho lição de casa para fazer.

-- Certo. Eu te amo

-- Também te amo.

Desliguei, e imediatamente minha mãe desapareceu na terra das palmeiras desbotadas.

Judy, eu li que sua primeira lembrança era da música. Da música que tomava conta de uma casa. E, um dia, de repente, a música começou a sair pela janela. Pelo resto da vida, você teve de correr atrás dela.

Beijos, Camila.

/TL

Cartas de amor aos mortos (Camren) -  Ava DellairaOnde histórias criam vida. Descubra agora