Querido Allan Lane,

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   Estou na casa da tia Taylor. Vou passar essa semana com ela. Gosto mais das semanas em que fico com meu pai, porque ele é meu pai, e faz parte da minha família do passado. Mas eu amo a tia taylor, e é por isso que estou escrevendo para você. Como você é a voz do Mister Ed, o cavalo falante, é o mais próximo dele que eu posso chegar. Minha tia ama o Mister Ed. Ama mesmo. E também ama Jesus. Quando éramos pequenas, meu pai não gostava que ficássemos com ela, porque achava que minha tia era instável. Mas minha mãe chorava e dizia:

-- Alejandro, elas são tudo o que Taylor tem. Como a tia Taylor não teve filhos, acho que ela sempre nos considerou um
pouco suas filhas.

Tia taylor tem quarenta anos e usa cabelo comprido e grisalho, e vestidos com estampa floral. Dá para ver que era bonita quando jovem. Mas não é como minha mãe, que continua tão bonita quanto antes. Minha mãe é delicada, como uma foto fora de foco, com o cabelo e o rosto um pouco borrados. Ou talvez seja assim que eu a vejo agora que foi embora. A tia Tay é magra e ossuda; não dá nem vontade de receber um abraço ou um cafuné dela. Ela abraça com muita força. A tia tay teve alguns namorados muito tempo atrás, mas eles não eram legais. Eu não deveria saber disso, mas ouvi minha mãe comentar uma vez, numa briga com meu pai.

   A tia tay não namorava ninguém desde quando eu lembrava, mas isso mudou no ano passado, quando ela se apaixonou por um sujeito que atravessa o país por Jesus. Ela ouviu falar dele no noticiário e decidiu que admirava muito aquele homem. Mandou cartas e pacotes para
as paradas que ele fazia ao longo do trajeto. E então decidiu ir até a
Flórida, para terminar a peregrinação com ele. A tia tay percorreu os
últimos cento e sessenta quilômetros com ele, e no meio do caminho eles
começaram um romance. Acho que ela imaginou que finalmente tinha
encontrado alguém com quem viver. Depois, começou a ligar sempre para
ele e deixar mensagens em que imitava Mister Ed ou os jamaicanos de Jamaica abaixo de zero (que é a coisa de que ela mais gosta depois de
Mister Ed).

   No começo, às vezes ele ligava de volta. Ela perguntava quando ia vê-lo de novo, mas ele nunca respondia direito. Depois as mensagens cessaram. Ela sempre conferia a secretária eletrônica, apesar de fingir que não se importava. Acho que não quer que eu a veja esperançosa.
(Não sei se o amor por Jesus faz alguém ser contra a tecnologia, mas a tia Tay ainda não descobriu o celular.)

  No começo do verão, depois que minha mãe contou que ia passar um tempo na Califórnia, fizemos uma espécie de reunião familiar. Foi nessa ocasião que a tia tay perguntou se eu gostaria de passar com ela as
semanas que seriam da minha mãe. É óbvio que as duas planejaram isso.
Minha mãe, meu pai, a tia Tay e eu estávamos sentados na casa onde sofi
e eu crescemos, no sofá em que nos sentamos juntas por anos. A tia tay
virou para mim e disse:

-- O que você acha, Camila?

Ela parecia querer tanto.
Meu pai não estava tão convencido, mas eu sabia que, se dissesse não
para a tia tay, ela falaria que tinham deixado sofi ir longe demais no
caminho do pecado e que eu precisava de Deus ou algo assim.
Dei de ombros.

--  Não sei.

   E então a tia tay disse que, se eu ficasse com ela, poderia ir à escola do
bairro. Eu ainda não tinha me dado conta de que iria para o ensino médio quando voltassem as aulas, mas pareceu uma boa ideia ir para uma escola diferente. Então concordei. Agora a tia tay não quer que eu faça nada. Sair, encontrar amigos, falar com garotas, nada. A única coisa que ela me deixa fazer é "estudar com alguém", que é como consigo sair com dinah e mani quando estou na casa dela. Hoje à noite a tia tay e eu fomos jantar no Furr's Cafeteria, como fazemos desde que sofi e eu éramos crianças. Peço sempre a mesma coisa -- carne, purê e gelatina vermelha. A tia tay me obriga a rezar com ela antes de comer, mesmo que seja apenas um sanduíche de alface americana com maionese e eu esteja vendo TV, e mesmo que meu pai e eu nunca rezemos em casa. Agora, a oração é sempre para sofi. Depois, ela pergunta se eu fui salva e se aceitei Jesus no coração.

   E sempre digo que sim, porque quero encerrar o assunto. E não quero que ela se preocupe. Sofi costumava dizer não e questionar.

-- E um bebê? E se um bebê que acabou de nascer, que não teve tempo de aceitar Jesus, morre? Ele vai para o inferno mesmo assim? E um adulto, que não é má pessoa, mas não conhece Jesus porque nunca ouviu falar dele? Vai para o inferno?

   A tia tay nunca respondia. Ela só ficava triste e dizia que queria que
conhecêssemos o amor de Jesus. Ela dizia:

--  Não veja o mal, não ouça o mal, não fale o mal.

   E tentava transformar isso num jogo, nos fazendo fechar os olhos, os
ouvidos e a boca. Sofi odiava. Agora a tia tay tem medo, acho, de que
Sofi não tenha sido salva. Ela quer garantir que isso não aconteça comigo.

   Mas não sabe a culpa que sinto. E não posso contar. Estávamos sentadas no Furr's, na mesa com bancos de vinil vermelho sob
o pé-direito que é alto demais até para um pé-direito alto, e eu me ocupava
com a gelatina vermelha, cortando cada quadrado em quatro partes. A tia tay pediu mais gelo para o chá gelado. E então começou a imitar o Mister Ed e me perguntar "Como o Mister Ed faz? Me mostra". Ela queria que eu fizesse o barulho de um cavalo andando, com as mãos na mesa, e relinchasse. Como fazíamos quando eu era criança.

    Sei como ela pode ser
insistente, e como fica triste quando me recuso a fazer. Então engoli a
gelatina e imitei o cavalo. Então olhei para o outro lado do salão e vi
Zayn, da minha turma de história, com os pais, provavelmente. Ele é um dos jogadores de futebol mais populares. Meu rosto ficou quente e rezei para ele não ter me visto fingindo galopar na mesa. Estou nervosa, porque hoje vou sair escondida pela primeira vez. Harry
e Louis vêm me pegar à meia-noite. Harry me apelidou de "docinho".

   Eles me adotaram, junto com dinah e mani, e são especialmente legais
comigo porque sou a mais quieta e adoro ouvir o que têm para ensinar.
Quando perguntaram o que íamos fazer no fim de semana, dinah e mani disseram que iam passar a noite na casa de mani, fora da cidade. Eu
expliquei que não poderia ir porque fico meio presa na casa da minha tia.
Então Louis e Harry se ofereceram para me ajudar a fugir e sair com
eles. Expliquei que estou morando metade do tempo com a tia tay porque minha mãe está numa espécie de retiro. Sei que é estranho que eu não tenha falado de sofi para nenhum deles, mas é como se eu tivesse uma chance de deixar as coisas ruins para lá. De ser outra pessoa, alguém como ela. Se eu tivesse ido para o Sandia, todo mundo ficaria de olho em mim, esperando alguma reação. Mas, em West Mesa, só eu sei sobre sofi. Além da sra. Allyson, se alguém por acaso leu a matéria no jornal tantos meses atrás ou ouviu falar da minha irmã, ninguém comentou nada. O mais provável é que não tenham prestado atenção ou tenham esquecido.

Beijos, Camila.

/TL

Cartas de amor aos mortos (Camren) -  Ava DellairaOnde histórias criam vida. Descubra agora